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DEMÉTRIO MAGNOLI
Mentindo
sobre a Aids
Um documento enviado há
duas semanas pelo gabinete do
ministro da Saúde ao Conselho Nacional de Saúde afirma que a taxa de expansão das infecções por HIV está
controlada e que a proporção de casos
da doença por habitante é baixa. O
texto provocou reações indignadas
entre especialistas e ativistas de ONGs.
O infectologista Caio Rosenthal, do
hospital Emílio Ribas, qualificou-o
por meio dos adjetivos "precipitado"
e "exagerado". Foi brando: é mentira
mesmo. A prova está no "Boletim Epidemiológico da Aids", a publicação
estatística do próprio Ministério da
Saúde que registra dois movimentos
complementares: uma tendência à estabilização da epidemia entre os homens e também na região Sudeste e,
simultaneamente, uma tendência ao
aumento da incidência da doença entre as mulheres e os pobres. Isso significa que a epidemia percorre ainda um
ciclo ascendente e que a distribuição
dos soropositivos tende a refletir mais
diretamente as características demográficas do país.
Por que o ministro Saraiva Felipe
mente? O seu documento obedece ao
imperativo político de justificar a desistência do governo de licenciar compulsoriamente a fabricação do medicamento Kaletra, consagrada pelo
acordo de redução de preço firmado
com o laboratório Abbott em outubro. Segundo a cantilena oficial, como
a epidemia está "controlada", o Brasil
não poderia justificar a quebra de patente no quadro dos acordos internacionais de propriedade intelectual e
teria feito um bom negócio com a redução do preço da cápsula de US$ 1,17
para US$ 0,63.
É o contrário do que o Ministério da
Saúde afirmava em junho, quando
uma nota do Programa Nacional de
DST/Aids esclareceu as bases do pretendido licenciamento compulsório
no direito brasileiro e internacional e,
usando estudos da Organização Mundial de Saúde, provou que o Abbott
conservaria "razoável margem de lucro" se cobrasse cerca de US$ 0,25 por
cápsula do Kaletra. Esses argumentos
repercutiram no exterior, angariando
apoios na Europa e motivando um
editorial do "New York Times" que
defendia o direito do Brasil de quebrar
patentes e produzir genéricos para
sustentar o seu programa de combate
à Aids.
Palavras ao vento. No acordo com o
Brasil, o Abbott garantiu um preço
elevado para um remédio em fim de
ciclo, ferido pela concorrência do Atazanavir, da Bristol, e ainda proibiu o
país, durante seis anos, de produzir
drogas com os princípios ativos lopinavir e ritonavir. Mais: por razões que
só a servidão voluntária explica, o Brasil abdicou da possibilidade de transferências tecnológicas, que é contemplada no artigo 7 do acordo Trips da
Organização Mundial de Comércio. O
produto final ameaça a sustentabilidade financeira e tecnológica de longo
prazo do programa nacional contra a
Aids e só pode ser sustentado por
meio do recurso à mentira.
Mas por que o Ministério da Saúde,
em poucos meses, renegou todas as
convicções e posições proclamadas
com solenidade? A hipótese de quebra
da patente do Kaletra gerou forte reação no Congresso americano. O tema
das patentes de remédios figurou com
destaque nas reuniões preparatórios
da visita de George Bush ao país. O
acordo com o Abbott, concluído menos de um mês antes do pouso do Air
Force One em Brasília, deve ser interpretado na moldura das "relações especiais" tecidas entre Lula e Bush.
A Aids, ora a Aids...
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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