São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Mentindo sobre a Aids

Um documento enviado há duas semanas pelo gabinete do ministro da Saúde ao Conselho Nacional de Saúde afirma que a taxa de expansão das infecções por HIV está controlada e que a proporção de casos da doença por habitante é baixa. O texto provocou reações indignadas entre especialistas e ativistas de ONGs.
O infectologista Caio Rosenthal, do hospital Emílio Ribas, qualificou-o por meio dos adjetivos "precipitado" e "exagerado". Foi brando: é mentira mesmo. A prova está no "Boletim Epidemiológico da Aids", a publicação estatística do próprio Ministério da Saúde que registra dois movimentos complementares: uma tendência à estabilização da epidemia entre os homens e também na região Sudeste e, simultaneamente, uma tendência ao aumento da incidência da doença entre as mulheres e os pobres. Isso significa que a epidemia percorre ainda um ciclo ascendente e que a distribuição dos soropositivos tende a refletir mais diretamente as características demográficas do país.
Por que o ministro Saraiva Felipe mente? O seu documento obedece ao imperativo político de justificar a desistência do governo de licenciar compulsoriamente a fabricação do medicamento Kaletra, consagrada pelo acordo de redução de preço firmado com o laboratório Abbott em outubro. Segundo a cantilena oficial, como a epidemia está "controlada", o Brasil não poderia justificar a quebra de patente no quadro dos acordos internacionais de propriedade intelectual e teria feito um bom negócio com a redução do preço da cápsula de US$ 1,17 para US$ 0,63.
É o contrário do que o Ministério da Saúde afirmava em junho, quando uma nota do Programa Nacional de DST/Aids esclareceu as bases do pretendido licenciamento compulsório no direito brasileiro e internacional e, usando estudos da Organização Mundial de Saúde, provou que o Abbott conservaria "razoável margem de lucro" se cobrasse cerca de US$ 0,25 por cápsula do Kaletra. Esses argumentos repercutiram no exterior, angariando apoios na Europa e motivando um editorial do "New York Times" que defendia o direito do Brasil de quebrar patentes e produzir genéricos para sustentar o seu programa de combate à Aids.
Palavras ao vento. No acordo com o Brasil, o Abbott garantiu um preço elevado para um remédio em fim de ciclo, ferido pela concorrência do Atazanavir, da Bristol, e ainda proibiu o país, durante seis anos, de produzir drogas com os princípios ativos lopinavir e ritonavir. Mais: por razões que só a servidão voluntária explica, o Brasil abdicou da possibilidade de transferências tecnológicas, que é contemplada no artigo 7 do acordo Trips da Organização Mundial de Comércio. O produto final ameaça a sustentabilidade financeira e tecnológica de longo prazo do programa nacional contra a Aids e só pode ser sustentado por meio do recurso à mentira.
Mas por que o Ministério da Saúde, em poucos meses, renegou todas as convicções e posições proclamadas com solenidade? A hipótese de quebra da patente do Kaletra gerou forte reação no Congresso americano. O tema das patentes de remédios figurou com destaque nas reuniões preparatórios da visita de George Bush ao país. O acordo com o Abbott, concluído menos de um mês antes do pouso do Air Force One em Brasília, deve ser interpretado na moldura das "relações especiais" tecidas entre Lula e Bush.
A Aids, ora a Aids...


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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