São Paulo, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2000


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De volta aos Campos de Piratininga


O projeto dos jesuítas tinha uma nítida e monumental dimensão utópica


NICOLAU SEVCENKO

É bom que se diga logo de início, de forma clara e simples: o que viria a ser um dia a cidade de São Paulo foi uma criação de comunidades indígenas que se estabeleceram e multiplicaram nos Campos de Piratininga, não apenas em tempos pré-cabralinos e pré-colombianos, mas em épocas imemoriais que se perdem na história do povoamento do continente americano. Além de serem muitos, viviam aqui em condições de abundância e segurança, dadas as características peculiares do local.
O fracasso das tentativas de colonização de São Vicente levou os portugueses, sempre presos à garantia da conexão européia representada pelo litoral, a sentirem-se atraídos por aquele núcleo de vitalidade exuberante de que ouviam falar, arriscando-se para além das montanhas e pelas profundezas da selva. Eles foram chegando, aos poucos e timidamente, pelo Caminho do Mar, usado desde tempos remotos pelos indígenas.
Primeiro se estabeleceram na borda dos Campos de Piratininga, fundando o núcleo de São Bernardo. O passo seguinte e de maior risco foi dado por seus agentes mais ousados, os missionários jesuítas, que fixaram sua presença no ponto mais estratégico para o controle de toda a vasta área. Deram-lhe a identidade de um evangelista obstinado: São Paulo.
O projeto dos jesuítas tinha uma nítida e monumental dimensão utópica. A colina onde o grupo se estabeleceu era um excelente ponto defensivo, protegido pelas vertentes íngremes do Anhangabaú e do Tamanduateí, com ampla visão sobre toda a imensa várzea alagada do Tietê. Mais importante: devido ao curso do Tietê em direção ao interior, estabelecendo amplas redes de conexão para o sul e para o norte por meio da cadeia hidrográfica do rio Paraná, os jesuítas conceberam São Paulo como a ponta-de-lança da criação de um vasto império jesuítico-guarani, abrangendo todo o sertão do continente, das costas dos Andes aos pampas.
Mas a realidade transformou o sonho em tragédia. Os colonos do núcleo de São Paulo e seus descendentes mestiços especializaram-se em escravizar e em vender como escravos exatamente os membros daquela comunidade cuja pujança os havia atraído até ali. Os Campos de Piratininga se converteram numa área de violência, opressão e pauperismo.
Tal como um pecado original, quantas vezes esse padrão histórico não se repetiu na curta existência de São Paulo? Com a tardia riqueza do café e a sua contrapartida, a escravidão. Com a industrialização e a superexploração dos operários, garantida, nas palavras de um notório governante paulista, pela força bruta da polícia sobre os excluídos do circuito elitista da política. Com o espetacular crescimento urbano, a rápida configuração da metrópole moderna, o arrogante crescimento vertical e seu lado sombrio (as favelas), os subúrbios abandonados à própria sorte e à fatalidade previsível, quando não deliberada, das enchentes periódicas.
Hoje, no momento em que as condições de vida na cidade chegaram ao fundo do poço em termos de degradação da infra-estrutura e esgarçamento do convívio humano, em que o pessimismo rola solto e a auto-estima dos paulistas está abaixo do nível de sobrevivência, é urgente que algo aconteça. Não precisa necessariamente ser algo novo. Quem sabe a melhor alternativa não seja olhar para trás e avaliar o que deu errado? Quem sabe ainda seja possível resgatar aquela comunidade mirífica que atraiu os primeiros portugueses aos Campos de Piratininga? Saldaríamos também uma dívida que se acumulou calamitosamente ao longo desses 446 anos.


Nicolau Sevcenko, 47, historiador, é professor de história da cultura da USP e membro do Center for Latin American Cultural Studies do King's College (Universidade de Londres). É autor de "Orfeu Extático na Metrópole - São Paulo nos Frementes Anos 20" (ed. Companhia das Letras).



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