UOL




São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Memória do futuro

MARCELO CARVALHO FERRAZ

"Se persegues o passado, nunca irás capturá-lo. Somente pela manifestação do presente poderá o passado falar."
S. Fehn

Pode parecer um paradoxo, mas a utilização do termo "memória do futuro" para designar a ação que pretendemos ter Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Monumenta na área do patrimônio histórico expressa precisamente nosso ideário, nossas pretensões, nossas mais legítimas ambições.
Uma pergunta básica, porém, deve preceder tudo: Restaurar e preservar para quê? Ora, só nos interessa o passado de pedra, barro, cal, madeira, ferro e tinta -o passado "construído"- se pudermos torná-lo vivo, útil, atual, necessário na contemporaneidade, para além de sua função documental. E mais (agora justificando o termo), se ele servir de espelho, de referência a um futuro por construir. A memória do que se produziu de melhor -pequenas construções, conjuntos urbanos e até cidades inteiras- foi classificada e tombada por ser testemunho de criações humanas de alta qualidade em infindáveis aspectos.
Portanto queremos a recuperação do patrimônio enquanto fato humano, algo que supera a obra como objeto.
Queremos que os construtores de nossas cidades de hoje e do futuro nele se mirem como em um espelho, ou para se orgulhar ou para se envergonhar do que estão fazendo. O julgamento é público e o resultado é evidente, sensível.
Poderíamos, então, perguntar hoje: Mas como andam as nossas cidades, todas elas, as pequenas, médias e as grandes? Maravilhosas? Confortáveis? Não é nem necessário responder...
Perdemos nossa capacidade de discernir (distinguir, formar juízo, avaliar, compreender, ver = "cern"); estamos cegos, ou anestesiados, e não sabemos mais construir cidades, casas, escolher nossos objetos do dia-a-dia. Perdemos o senso estético, no sentido mais profundo e amplo que o termo possa ter; perdemos o "sentido das coisas". Nossa pouca cultura arquitetônica "lato sensu" foi-se pelo ralo nas últimas vorazes décadas.


Estamos cegos, ou anestesiados, e não sabemos mais construir cidades, casas, escolher nossos objetos


Por isso, o objetivo maior da preservação do patrimônio histórico é educar, é ajudar a compreender a complexidade de nossas cidades, é servir como referência do melhor de nossa produção e -por que não?- da criação humana. O passado só nos interessa enquanto vivo, enquanto servir de alimento. Não é possível imaginar que Aleijadinho, lá no século 18, quando esculpia o medalhão da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, estivesse pensando que um dia aquilo viria a ser tombado por um órgão de preservação chamado Iphan -que viria a ser constituído 150 anos depois-, em reconhecimento ao valor e à qualidade de sua criação.
É claro que não. Trata-se de uma piada. Mas ele sabia, sim, no seu mais íntimo sentimento de artista, que fazia obra para a eternidade, dando tudo de si, criando, conectado com sua época, mas ancorado no futuro.
Não precisamos ir tão longe nos nossos padrões de exigência, querendo novos Aleijadinhos.
Mas (e aqui vai um recado aos construtores de nossas cidades, principalmente aos arquitetos) sejamos responsáveis e criativos ao atuar em nossas sofridas e ofendidas cidades. Que, ao olhar para o passado, através do patrimônio histórico construído, não fiquemos mortos de vergonha.
Que ousemos pensar que patrimônio é tudo o que se constrói e o que se gasta para construir, e não somente aquilo que um dia poderá ser tombado; que a cidade é um bem maior da humanidade e, portanto, merece respeito e carinho.
Nossas cidades só querem dedicação. Afinal, cultura é sinônimo de cuidado -físico e espiritual.

Marcelo Carvalho Ferraz, arquiteto, é coordenador nacional do Monumenta, o programa de recuperação dos sítios históricos do Ministério da Cultura.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jorge Bornhausen: Nem agressão, nem capitulação. Oposição

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.