|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Memória do futuro
MARCELO CARVALHO FERRAZ
"Se persegues o passado, nunca irás capturá-lo. Somente pela manifestação do presente poderá o passado falar."
S. Fehn
Pode parecer um paradoxo, mas
a utilização do termo "memória do
futuro" para designar a ação que pretendemos ter Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e
Monumenta na área do patrimônio histórico expressa precisamente nosso
ideário, nossas pretensões, nossas mais
legítimas ambições.
Uma pergunta básica, porém, deve
preceder tudo: Restaurar e preservar
para quê? Ora, só nos interessa o passado de pedra, barro, cal, madeira, ferro e
tinta -o passado "construído"- se
pudermos torná-lo vivo, útil, atual, necessário na contemporaneidade, para
além de sua função documental. E mais
(agora justificando o termo), se ele servir de espelho, de referência a um futuro
por construir. A memória do que se
produziu de melhor -pequenas construções, conjuntos urbanos e até cidades inteiras- foi classificada e tombada
por ser testemunho de criações humanas de alta qualidade em infindáveis aspectos.
Portanto queremos a recuperação do
patrimônio enquanto fato humano, algo que supera a obra como objeto.
Queremos que os construtores de
nossas cidades de hoje e do futuro nele
se mirem como em um espelho, ou para
se orgulhar ou para se envergonhar do
que estão fazendo. O julgamento é público e o resultado é evidente, sensível.
Poderíamos, então, perguntar hoje:
Mas como andam as nossas cidades, todas elas, as pequenas, médias e as grandes? Maravilhosas? Confortáveis? Não é
nem necessário responder...
Perdemos nossa capacidade de discernir (distinguir, formar juízo, avaliar,
compreender, ver = "cern"); estamos
cegos, ou anestesiados, e não sabemos
mais construir cidades, casas, escolher
nossos objetos do dia-a-dia. Perdemos
o senso estético, no sentido mais profundo e amplo que o termo possa ter;
perdemos o "sentido das coisas". Nossa
pouca cultura arquitetônica "lato sensu" foi-se pelo ralo nas últimas vorazes
décadas.
Estamos cegos, ou anestesiados, e não sabemos mais construir cidades, casas, escolher nossos objetos
|
Por isso, o objetivo maior da preservação do patrimônio histórico é educar, é
ajudar a compreender a complexidade
de nossas cidades, é servir como referência do melhor de nossa produção e
-por que não?- da criação humana.
O passado só nos interessa enquanto vivo, enquanto servir de alimento. Não é
possível imaginar que Aleijadinho, lá no
século 18, quando esculpia o medalhão
da igreja de São Francisco de Assis, em
Ouro Preto, estivesse pensando que um
dia aquilo viria a ser tombado por um
órgão de preservação chamado Iphan
-que viria a ser constituído 150 anos
depois-, em reconhecimento ao valor
e à qualidade de sua criação.
É claro que não. Trata-se de uma piada. Mas ele sabia, sim, no seu mais íntimo sentimento de artista, que fazia obra
para a eternidade, dando tudo de si,
criando, conectado com sua época, mas
ancorado no futuro.
Não precisamos ir tão longe nos nossos padrões de exigência, querendo novos Aleijadinhos.
Mas (e aqui vai um recado aos construtores de nossas cidades, principalmente aos arquitetos) sejamos responsáveis e criativos ao atuar em nossas sofridas e ofendidas cidades. Que, ao olhar
para o passado, através do patrimônio
histórico construído, não fiquemos
mortos de vergonha.
Que ousemos pensar que patrimônio
é tudo o que se constrói e o que se gasta
para construir, e não somente aquilo
que um dia poderá ser tombado; que a
cidade é um bem maior da humanidade
e, portanto, merece respeito e carinho.
Nossas cidades só querem dedicação.
Afinal, cultura é sinônimo de cuidado
-físico e espiritual.
Marcelo Carvalho Ferraz, arquiteto, é coordenador nacional do Monumenta, o programa de recuperação dos sítios históricos do Ministério da
Cultura.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Jorge Bornhausen: Nem agressão, nem capitulação. Oposição Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|