São Paulo, quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Investigação criminal e Ministério Público

RODRIGO CÉSAR REBELLO PINHO

A realização de investigações criminais pelo Ministério Público deve ser preservada para a plenitude do Estado democrático de Direito. Não constitui novidade. Desde a edição do Código de Processo Penal, em 1941, já se entendia que os promotores de Justiça podiam efetuar investigações por meios próprios, tendo em vista que o inquérito policial nunca foi indispensável para a propositura da ação penal.


Interessa ao bom funcionamento da democracia que a função de investigar crimes não fique num único órgão


Assim, graças a investigações feitas pelo Ministério Público de São Paulo, foi desvendada a autoria de diversos crimes, tais como os praticados pelo famigerado "Esquadrão da Morte". Nem a ditadura militar, que utilizou algumas lideranças daquela organização para combater seus opositores, patrocinou qualquer restrição legal às atribuições do Ministério Público. De uns tempos para cá, no entanto, uma corrente do pensamento jurídico, motivada por investigações independentes feitas por promotores de Justiça, passou a defender a ilegitimidade do Ministério Público para instaurar procedimentos e realizar atos investigatórios. Essa corrente baseia seu entendimento numa leitura tópica e isolada de dispositivo constitucional, segundo a qual a polícia judiciária teria o monopólio da investigação criminal.
A interpretação sistemática da Constituição não autoriza esse entendimento. É inconcebível que o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal e destinatário final das apurações, seja reduzido à condição de mero expectador da atividade investigatória e de simples transmissor de seu conteúdo ao Poder Judiciário.
Foi exatamente para garantir a efetividade e a independência do exercício de suas funções que o Ministério Público foi concebido pelo constituinte de 1988 como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, outorgando-lhe autonomia funcional e administrativa, em posição singular em relação aos Poderes do Estado, e conferindo aos promotores e procuradores as garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da independência funcional.
A polícia judiciária, não obstante suas relevantes funções, não goza das mesmas prerrogativas jurídico-constitucionais. É vinculada à estrutura orgânica do Executivo, e seus integrantes estão subordinados ao princípio hierárquico, vale dizer, podem a qualquer tempo ser removidos de suas funções, segundo a conveniência de seus superiores, que também podem avocar, a todo instante, a condução de investigações que estejam a cargo dos subordinados.
É evidente que estabelecer o monopólio da investigação criminal à polícia judiciária representará uma contribuição significativa para a impunidade de agentes estatais, da criminalidade organizada, dos criminosos de "colarinho branco", dos grupos de extermínio, dos crimes contra os direitos humanos, dentre os quais o de tortura, e de outros delitos.
Essa afirmação é feita não porque o Ministério Público esteja acima do bem e do mal ou detenha o monopólio da virtude, mas sim porque há sempre a hipótese, não tão rara em nossa história, de que suspeitos influentes, quando investigados ou envolvidos em delitos, procurem escapar da punição, valendo-se de pressões, do afastamento dos incumbidos pelas investigações e do direcionamento dessas, a que o princípio da hierarquia, a que está submetida a polícia judiciária, não constitui obstáculo. Dos mesmos métodos poderá se valer a criminalidade organizada, que costuma operar, quase sempre, associada a agente estatal. Do crime de tortura nem é necessário maiores indagações para imaginar o grau de impunidade dessa gravíssima infração caso fosse investigada exclusivamente pela polícia judiciária.
Não é de estranhar que os maiores entusiastas da "lei da mordaça" sejam os mesmos que aplaudem o monopólio das investigações criminais por um único órgão estatal. Incomodam-se não apenas com a repercussão das apurações, mas principalmente com a própria existência delas, porque transferem para a função investigativa a concepção patrimonialista que têm do Estado brasileiro.
O Ministério Público não quer para si a exclusividade das investigações criminais. Pretende, apenas, ter a possibilidade de realizá-las quando necessário, da mesma forma que ocorre em outros países, como a França, a Itália e os EUA.
Interessa ao equilíbrio dos Poderes e ao bom funcionamento do regime democrático que a importantíssima função de investigar crimes não fique concentrada num único órgão.
A história recente do Brasil apresenta inúmeros exemplos nos quais o trabalho investigativo desenvolvido pelo Ministério Público foi fundamental para o esclarecimento de crimes de extrema gravidade. Talvez exatamente por isso há quem pretenda eliminar essa prerrogativa do Ministério Público, assegurando a impunidade aos infratores poderosos e reservando o Código Penal para as pessoas comuns.

Rodrigo César Rebello Pinho, 47, é procurador de Justiça do Estado de São Paulo.


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