|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Naquele tempo
RIO DE JANEIRO - Não me darei ao respeito de ir ao cinema ver a Paixão
de Cristo segundo Mel Gibson. Tampouco vi outras versões anteriores,
nem mesmo a superprodução de Zeffirelli, que tem a fama de ser a mais
respeitosa e edulcorada. Considero os
Evangelhos como peças literárias, um
"auto pastoril", como queria Renan.
Não se traduzem em imagens e muito menos em ação.
O que fica valendo e valerá para
sempre são aquelas rubricas genéricas, "naquele tempo", ou "disse Jesus
a seus discípulos". Transformar o naquele tempo num tempo preciso é
chutar de acordo com a tecnologia
em vigor. Lembro aquelas vias-sacras
feitas pela Pathé, no início do cinema, a Santa Família montada num
burrico que avança aos solavancos.
Ao fundo, e em sentido contrário,
aparece um ciclista apalermado, sem
saber que estava participando da fuga para o Egito.
Depois de morto e ressuscitado, Jesus sobe aos céus puxado por cordas
pintadas com a mesma cor do céu
nublado, seriam invisíveis na tela se
de repente não aparecessem a mão e
o relógio de pulso de um dos membros da turma que elevava o Filho de
Deus para junto de seu Pai Celestial.
Quando criança, numa Sexta-Feira
Santa, meu pai terreno levou-me para ver uma peça recorrente na praça
Tiradentes, "O mártir do Calvário",
que purgava os delitos acumulados
durante o ano pelas coristas do teatro
que ali se fazia. Sem mais nem menos, no meio da flagelação, o tenor
Vicente Celestino aparecia e cantava
a "Ave-Maria", de Gounod. O pai batia palmas e eu afundava na poltrona, envergonhado de estar ali, vendo
coisas que imaginava mais bonitas e
transcendentais reduzidas à piedade
esculhambada.
Deixando de lado veículo e conteúdo, o cinema e a mensagem, continuo
fazendo eu mesmo a produção, o roteiro, a interpretação, o guarda-roupa e os efeitos especiais das histórias
de que gosto. Não gasto nada e ganho
muito ao imaginar como as coisas seriam naquele tempo.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Câmara ardente Próximo Texto: Otavio Frias Filho: O fôlego da crise Índice
|