São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O urânio e o futuro do país

ROBERTO AMARAL

O Brasil, considerando apenas a área prospectada, é o sexto país em reservas de urânio. O estoque conhecido é suficiente para manter funcionando nossas usinas Angra 1 e Angra 2, mais a futura Angra 3, por cerca de cem anos. Mas ter reservas minerais não é tudo. Para ser utilizado -e para ter valor comercial- o urânio precisa ser enriquecido, processo que compreende inúmeras fases e o acesso a segredos tecnológicos guardados com todas as chaves pelos países desenvolvidos.
Inicialmente, o minério bruto é processado para a extração da maior quantidade possível do urânio nele contido. Isso gera um material sólido chamado "yellow cake". Antes do enriquecimento propriamente dito, o urânio puro deve ser transformado em gás. Nas usinas de enriquecimento, é aumentada a proporção de urânio 235 no gás. Em seguida ele é reconvertido para a fase sólida, constituindo um pó compactado ("pellets"), e acondicionado em varetas que compõem o elemento combustível.
Precisamos de urânio enriquecido para alimentar Angra 1 e 2 (que respondem por 4% da produção nacional de energia elétrica) e, se o país tiver juízo, a futura Angra 3.


Não há futuro nem independência se renunciarmos ao desenvolvimento científico e tecnológico


Qual é o procedimento atual? Produzimos o "yellow cake" e o remetemos a processadores no exterior, para transformação em gás enriquecido. Depois, ele retorna ao país para ser reconvertido ao pó e acondicionado nos elementos combustíveis. Como a tecnologia nos havia sido negada, não nos restou alternativa senão o saudável investimento em pesquisa. Assim, já dominamos hoje a tecnologia para enriquecimento isotópico do urânio, desenvolvida pela Marinha, em colaboração com o Ipen (Instituto de Pesquisas de Energia Nuclear), e brevemente estaremos produzindo nosso combustível na fábrica da INB (Indústrias Nucleares Brasileiras).
A tecnologia não é pioneira, mas as centrífugas, principal equipamento da planta, têm importantes avanços que as tornam mais eficientes do que qualquer outra em uso no mundo. Precisamos proteger esse segredo industrial. O domínio dessa tecnologia tanto resulta do acúmulo de pesquisas, como determina novos avanços científicos e tecnológicos que se refletirão em novas conquistas; além da conclusão do ciclo nuclear, significa maior segurança no fornecimento do combustível, economia de custo e de divisas e, no futuro, a possibilidade de fornecermos urânio enriquecido para o exterior. O ganho econômico pode ser medido pela diferença de preço, no mercado internacional, entre o minério bruto e o elemento combustível.
Uma vez mais se coloca para o país a opção entre permanecer como mero fornecedor de matéria-prima "in natura" ou transformar-se em exportador de conhecimento. Cumpre-nos, é nossa opinião, rejeitar como destino a condição de dependência, optando pela emancipação nacional como base de nosso futuro. E não há futuro nem independência se renunciarmos ao desenvolvimento científico e tecnológico. Não se veja nessa política a revisão do velho projeto do Brasil potência nem arroubos de um militarismo arcaico. Trata-se, simplesmente, de optar entre independência e dependência. Nossa tecnologia, voltada para os usos pacíficos da energia nuclear, nada tem a ver com a produção de bombas, que requer urânio enriquecido a mais de 90% em seu isótopo 235 -a planta de enriquecimento isotópico da INB, em Rezende, foi projetada para enriquecimento até 5%, destinando-se, logo, exclusivamente à fabricação de elementos combustíveis dos reatores de potência do sistema Angra e de alguns tipos de reator para propulsão naval.
Portanto nosso país nada tem a esconder. E jamais escondeu. Lembremos. Além de haver aderido, em 1997, ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares unilateralmente, ou seja, sem cobrar contrapartidas, como transferência de tecnologia, o Brasil é ainda hoje o único país do mundo a determinar, em sua Constituição (art. 21, XXIII, a), que toda atividade nuclear em território nacional só será admitida para fins pacíficos. E é o único país a permitir vistorias em suas instalações militares. E o único submetido a vistorias de duas agências internacionais -a Agência Internacional de Energia Atômica e a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares.
O país recebe anualmente cerca de 50 inspeções anunciadas e seis inspeções não-anunciadas em suas instalações nucleares. Quando foi levantado o pleito da Aiea com vistas à assinatura de um novo acordo de salvaguardas, nossa posição foi a de assegurar às agências a aplicação de um controle efetivo do material nuclear utilizado, ao mesmo tempo em que defendíamos a discussão de outras questões, como desarmamento e, principalmente, nosso acesso às conquistas tecnológicas, além de igualdade de condições entre os signatários.
É querer muito? Não creio.
O diferencial é que esses devem ser os termos de discussão de um país preocupado em preservar seus interesses, para continuar soberano. Lembremos, por fim, que o programa nuclear brasileiro não se reduz à produção de combustível. São notáveis suas aplicações nas seguintes áreas: medicina, com vista a diagnóstico ou terapia -mais de 2 milhões de procedimentos médicos usam anualmente, no Brasil, substâncias radioativas-; meio ambiente; indústria; agricultura e irradiação de alimentos; siderurgia; indústrias do petróleo e de papel; beneficiamento de gemas; esterilização de materiais e no melhoramento genético e controle de pragas; áreas de materiais, processos físicos, químicos e tecnologia de suporte.
Assim, trata-se de programa estratégico que decide hoje o futuro do país.

Roberto Amaral, 62, advogado e cientista político, é vice-presidente nacional do PSB. Foi ministro da Ciência e Tecnologia (2003-2004).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Denis Lerrer Rosenfield: Ética e política

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.