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OTAVIO FRIAS FILHO
Volúpias da fé
A celeuma sobre casos de pedofilia entre sacerdotes católicos - e
a maneira como o Vaticano os vinha
varrendo para debaixo do tapete-
mostra que até uma instituição fechada, como a Igreja Católica, que se legitima pela tradição, está mais sujeita à
supremacia da lei civil e a ser inquirida
perante a opinião pública mundializada pela mídia.
Isso pode ser novo, não a pedofilia
em si. Sabe-se que o ambiente de restrição sexual, próprio das igrejas em
seu ecumênico ódio aos prazeres terrenos, costuma atrair duas classes de
recrutas. Podem ser pessoas dotadas
de capacidade incomum para espiritualizar seus impulsos e colocá-los a
serviço da fé e da missão que ela impõe.
E também podem ser pessoas que
desenvolveram uma sexualidade problemática. Para estas, os rigores da
abstinência serão antes uma maneira
de calar impulsos que incomodam do
que de superá-los rumo a alguma verdadeira transfiguração. Quanto mais
fortes os impulsos, maior a ciranda de
culpa e penitência que alimenta as fornalhas da fé.
Até mesmo a sensação secreta de
vergonha e vileza que deve atormentar muitas dessas pessoas as aproxima, paradoxalmente, do êxtase religioso. Pois está nos Evangelhos que
Cristo, acusado de andar em companhia de bêbados e de prostitutas, viera
pregar aos pecadores, não aos virtuosos. Esse é o tema da maior parte das
parábolas.
Mas a lei civil não se curva aos paradoxos do irracionalismo religioso,
nem o espírito da nossa época. Este último derrubou quase todos os tabus
sexuais, que estão sempre na base dos
interditos da religião, como se fossem
duas faces da mesma medalha. Passou-se a respeitar, como direito, a pluralidade das inclinações e gostos.
Menos um: a pedofilia, cujo estigma
só cresceu conforme se estabelecia um
consenso, entre os especialistas sempre desacordes, de que crianças expostas a estímulos sexuais diretos podem se tornar psiquicamente enfermas. Garantia de proteção não só contra maus-tratos mas contra os desejos
do adulto é direito civil da criança.
Houve tempos em que a igreja pareceu disposta a enfrentar o problema
das distorções geradas por sua severidade em matéria de costumes. Eram
os explosivos anos 60, sob a égide de
um papa "progressista", ao contrário
do atual. Padres como, no Brasil, Paul-Eugéne Charbonneau, debatiam acidamente a pílula, o aborto, o celibato.
Foi o tempo em que a igreja aboliu o
latim, aproximou-se do cotidiano moderno, fez sua "opção preferencial"
pelos pobres. Era uma saudável oxigenação de atitudes, mas cabia perguntar o que restaria de próprio e inconfundível nela depois, questionar se a
essência do catolicismo não está em
seus dogmas e interdições absurdas.
João Paulo 2º deu a resposta prática
para essas perguntas. Comandou uma
regressão nos dois flancos, o "social" e
o dos costumes, que chega ao paroxismo criminoso da campanha contra o
uso de camisinhas. Os impulsos mais
básicos, porém, entre os quais os do
sexo, são inelásticos; não há bula ou
excomunhão capaz de revogá-los.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta
coluna.
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