São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Volúpias da fé

A celeuma sobre casos de pedofilia entre sacerdotes católicos - e a maneira como o Vaticano os vinha varrendo para debaixo do tapete- mostra que até uma instituição fechada, como a Igreja Católica, que se legitima pela tradição, está mais sujeita à supremacia da lei civil e a ser inquirida perante a opinião pública mundializada pela mídia.
Isso pode ser novo, não a pedofilia em si. Sabe-se que o ambiente de restrição sexual, próprio das igrejas em seu ecumênico ódio aos prazeres terrenos, costuma atrair duas classes de recrutas. Podem ser pessoas dotadas de capacidade incomum para espiritualizar seus impulsos e colocá-los a serviço da fé e da missão que ela impõe.
E também podem ser pessoas que desenvolveram uma sexualidade problemática. Para estas, os rigores da abstinência serão antes uma maneira de calar impulsos que incomodam do que de superá-los rumo a alguma verdadeira transfiguração. Quanto mais fortes os impulsos, maior a ciranda de culpa e penitência que alimenta as fornalhas da fé.
Até mesmo a sensação secreta de vergonha e vileza que deve atormentar muitas dessas pessoas as aproxima, paradoxalmente, do êxtase religioso. Pois está nos Evangelhos que Cristo, acusado de andar em companhia de bêbados e de prostitutas, viera pregar aos pecadores, não aos virtuosos. Esse é o tema da maior parte das parábolas.
Mas a lei civil não se curva aos paradoxos do irracionalismo religioso, nem o espírito da nossa época. Este último derrubou quase todos os tabus sexuais, que estão sempre na base dos interditos da religião, como se fossem duas faces da mesma medalha. Passou-se a respeitar, como direito, a pluralidade das inclinações e gostos.
Menos um: a pedofilia, cujo estigma só cresceu conforme se estabelecia um consenso, entre os especialistas sempre desacordes, de que crianças expostas a estímulos sexuais diretos podem se tornar psiquicamente enfermas. Garantia de proteção não só contra maus-tratos mas contra os desejos do adulto é direito civil da criança.
Houve tempos em que a igreja pareceu disposta a enfrentar o problema das distorções geradas por sua severidade em matéria de costumes. Eram os explosivos anos 60, sob a égide de um papa "progressista", ao contrário do atual. Padres como, no Brasil, Paul-Eugéne Charbonneau, debatiam acidamente a pílula, o aborto, o celibato.
Foi o tempo em que a igreja aboliu o latim, aproximou-se do cotidiano moderno, fez sua "opção preferencial" pelos pobres. Era uma saudável oxigenação de atitudes, mas cabia perguntar o que restaria de próprio e inconfundível nela depois, questionar se a essência do catolicismo não está em seus dogmas e interdições absurdas.
João Paulo 2º deu a resposta prática para essas perguntas. Comandou uma regressão nos dois flancos, o "social" e o dos costumes, que chega ao paroxismo criminoso da campanha contra o uso de camisinhas. Os impulsos mais básicos, porém, entre os quais os do sexo, são inelásticos; não há bula ou excomunhão capaz de revogá-los.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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