São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A humanidade contra o Estado

RICARDO SEITENFUS

A penas a intervenção estrangeira pode assegurar um patamar mínimo de convivência política no Haiti. A importante participação brasileira no conturbado país caribenho, por meio de uma futura missão de paz, é uma demonstração de solidariedade com um dos povos mais martirizados e pobres do planeta.
A idéia de que cada sociedade deva resolver de forma autônoma seus dilemas nacionais -sustentáculo do princípio da não-intervenção- é absolutamente inaplicável em certas situações, como, por exemplo, o caso haitiano. Jamais esse país conheceu, ao longo de sua história, sequer vestígios de democracia.
A vontade da maioria sempre foi esmagada pela força. Não se trata de uma fórmula de efeito ou frase de estilo, mas de uma cruel realidade. A violência política, defendida há poucos dias publicamente pelo ex-presidente Aristide, integra o que ele reputa como um traço da cultura haitiana e constitui um elemento do caráter nacional de seu povo. O raciocínio do padre Aristide conduz ao princípio de que cada povo tem o direito de usufruir de sua própria guerra civil. Ora, nada mais desumano do que a demonstração de indiferença em face do sofrimento de outrem. Foi essa indiferença que permitiu o genocídio nazista e que, infelizmente, repetiu-se há dez anos, em Ruanda, onde foram assassinados mais de 800 mil civis.
A tardia descoberta da dimensão do extermínio judeu e de outras minorias fez com que a humanidade tomasse uma corajosa e difícil decisão: as linhas de fronteiras entre os Estados não mais deverão ser estanques quando a barbárie for perpetrada. O sacrossanto dogma da soberania em nome do qual atrocidades foram cometidas contra seus próprios nacionais foi pela primeira vez questionado. Recentes pesquisas, como as de Rummel, publicadas na obra "Assassinados pelo Governo", provam que durante o século 20 a luta pelo poder no seio dos Estados provocou conflitos e guerras civis que causaram mais de 150 milhões de mortes, cifra bem superior ao número de vítimas das duas guerras mundiais.
As intervenções devem respeitar as seguintes condições: iniciativa coletiva sob o respaldo das organizações internacionais -no caso do Haiti, a OEA e a ONU; o armamento utilizado será exclusivamente defensivo; o objetivo, a médio prazo, é a restauração do status quo ante e a longo prazo, a criação de instituições representativas que permitam a expressão da vontade de todos. Finalmente, a intervenção deve proporcionar a restauração dos serviços públicos e lançar as bases para o desenvolvimento econômico e social.
Pode-se questionar se os Estados interventores estão agindo em nome de seu interesse nacional, e não do interesse da humanidade. O exemplo iraquiano ilustra esse permanente risco. Quem conhece minimamente o paupérrimo Haiti, porém, sabe que não há como tirar partido material da intervenção, pois inexistem vantagens para o interventor.


Quem conhece minimamente o paupérrimo Haiti sabe que não há como tirar partido material da intervenção
A questão que se coloca não é concordar ou discordar da intervenção de caráter humanitário, mas sim a maneira como ela será concretizada. Os desajustes do sistema internacional não podem e não devem servir de biombo para que se eximam das responsabilidades.
Quando a humanidade tomar consciência de que ela deve ultrapassar e transcender o Estado nacional, caso este continue a agir somente movido por interesses egoístas e mesquinhos, ela criará o seu próprio Conselho de Segurança da Humanidade, que terá como objetivo o respeito dos direitos fundamentais e naturais do homem, de todos os homens.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 55, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é professor titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria. Integrou a missão da ONU/OEA no Haiti em 1993 e é autor do livro "Haiti, a Soberania dos Ditadores" (editora Sólivros, 1994).


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