São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O legado de Paulo de Mesquita Neto

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS


Não bastava compreender por que, entre todas as áreas de governo, a segurança pública é uma das que menos se modernizaram

HÁ UM mês morreu Paulo de Mesquita Neto. Tempo para ler seus escritos e perceber como se aprofundou nele uma reflexão e uma procura que caracterizaram toda a sua atividade profissional, revelando, por trás do jeito manso e reservado, um homem obstinado e inconformado.
É que, pensando bem, Paulo não podia tolerar o intolerável, como dizia Deleuze. E a forma como isso se traduziu em sua vida foi o investimento concentrado de suas capacidades no que considerou um problema capital: a violência contra o humano, que, no Brasil, se explicita no plano político como questão de segurança pública.
Questão terrível. Mesmo assim, por mais paradoxal que pareça, das menos pensadas e enfrentadas em sua complexidade pela classe dirigente.
Em meados dos anos 80, quando o conheci, cursava direito e jornalismo.
Depois, foi para Nova York, onde defendeu doutorado em ciência política (Universidade de Columbia), sobre os militares brasileiros na transição da ditadura para a democracia. Nessa época, a democracia tornou-se para ele um valor, e passou a apostar na sua construção. Por isso deixou que em sua personalidade e em sua inteligência prevalecesse o espírito pragmático, e não o crítico -mais que denunciar ou criticar, importava fazer, agir.
De volta ao Brasil, Paulo engajou-se em organizações comprometidas com a luta pelos direitos humanos.
Mas logo ficou claro que seu foco devia deslocar-se da violência militar para a policial, entendida como expressão flagrante das limitações da democracia brasileira e como entrave ao exercício pleno dos direitos humanos. Como se a transição para a democracia só pudesse se completar politicamente se a violência do Estado deixasse de se abater desabridamente não só contra os opositores políticos, como nos tempos da ditadura, mas, sobretudo, contra as camadas pobres e marginalizadas da população.
Procurando ajudar a resolver o problema da violência estatal, Paulo se tornou profundo conhecedor do modo como se estrutura a segurança pública -ou melhor, de como ela deve ser pensada em sua relação matricial com a insegurança dos cidadãos.
Não bastava compreender por que, entre todas as áreas de governo, essa é uma das que menos avançaram e se modernizaram; não bastava mapear obstáculos, interesses, conexões espúrias; nem era suficiente estabelecer relações com as desigualdades socioeconômicas ou se contentar com as explicações político-ideológicas.
Era preciso ir além, descer na arena, conversar com policiais, juristas, empresários -em termos profissionais, como especialista.
Engana-se quem viu nessa conduta uma redução da segurança à sua dimensão instrumental. A preocupação constante que pulsa atrás da aparente frieza e tecnicidade das análises é com as possibilidades de desbloquear uma situação que só se agravava, de tentar fazer ver a urgência de reformas, de formular propostas, de envolver a sociedade civil num debate em que ela é a principal interessada.
Nunca desanimou, embora a lucidez crescente tenha lhe mostrado que, apesar de alguns avanços louváveis, o poder público jamais deixou de pensar a segurança nos velhos moldes repressivos.
Basta ler a análise que escreveu, com Fernando Salla, sobre a crise da segurança pública e do sistema prisional em São Paulo, em 2006 -episódio que demoliu a ficção da eficiência repressora e desnudou a inquietante "paralisia política" das autoridades, incapazes de enfrentar de modo civilizado o aumento da violência urbana e do crime organizado.
Ou, ainda, as cortantes três páginas de "Mortes a Esclarecer, Crises a Evitar", que começam com a morte de 439 pessoas, de 12 a 20 de maio, e terminam com a constatação da desconversa a que deram lugar.
Paulo sabia que a política adotada é insustentável no longo prazo; que a segurança é um problema do Estado brasileiro; que a insegurança é crescente e que fica cada vez mais difícil mudar o rumo das coisas.
É o que se pode perceber em seu último texto, de fevereiro de 2008, "Democracia e segurança pública no Brasil". O cenário ali pintado é de pesadelo. Entretanto, no último parágrafo, desponta ainda a esperança de que os resultados contraproducentes das políticas repressivas suscitem pelo menos a contenção dessa onda.
Lá estava o Paulo de sempre, inconformado, recusando a violência contra o humano. Por que ele era assim? Guardo comigo a convicção de que se tratava de nobreza de caráter, o que lhe conferia um ar um tanto antiquado, para não dizer extemporâneo, se lembrarmos que tal traço expressava virtude nos tempos de Maquiavel, de La Boétie... O legado de Paulo é a integridade, esse fio quase invisível, mas intensíssimo, que costurou seus afetos, seus sentimentos, seu pensamento, seu insaciável desejo de justiça.


LAYMERT GARCIA DOS SANTOS , 59, sociólogo, é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Cláudio Guimarães dos Santos: "Vox populi, vox Dei?"

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.