São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Dívida externa e governo em julgamento



O mais recente ciclo de endividamento externo conseguiu a proeza de nem deixar sua marca em realizações palpáveis
JOÃO PEDRO STEDILE e JOSÉ ALBINO DE MELLO Há cerca de dois anos, quando o Plano Real ainda despertava a euforia de alguns, o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, chegou a assegurar que o problema da dívida externa estava "resolvido". Apesar de várias vozes tentarem demonstrar o contrário, só a desvalorização de janeiro, a gravidade da crise e a ingerência do FMI (Fundo Monetário Internacional) em nossa economia escancararam novamente para o país a questão das dívidas interna e externa.
Enquanto máquinas param, empregos desaparecem e a miséria aumenta, o que faz o governo? Repete à exaustão a necessidade de um permanente ajuste fiscal, alegando não ter recursos para investimentos em setores essenciais. Não explica por que não limita o pagamento dos juros da dívida interna e da dívida externa, que são os verdadeiros causadores do déficit público.
Mas façamos justiça a Franco: do ponto de vista do capital financeiro internacional, o problema da dívida está muito bem resolvido. Os pagamentos de juros e serviços dessa dívida foram honrados britanicamente pelo governo ao longo dos últimos quatro anos. Mas, para uma imensa legião de excluídos -carente de salário, moradia, educação, terra, saúde e serviços públicos decentes e credora de uma imensa dívida social-, o problema continua.
Pelo impacto que têm na vida de todos os brasileiros, as dívidas externa e interna não são apenas uma questão de acertos contábeis pelo Banco Central. Antes de tudo, constituem um obstáculo à vida nacional, de natureza política, ética e moral. Atualmente, os dois débitos são como unha e carne. A principal maneira de o governo obter dólares para honrar compromissos no exterior é conseguir mais empréstimos, atraindo o capital especulativo, que busca bom pouso ao redor do mundo, com altas taxas de juros e baixos impostos. Assim, para tapar um rombo, abre-se outro. E as dívidas se misturam.
Como um câncer, elas não param de crescer. Tomemos a dívida externa, por exemplo. Em 1964, ela era de US$ 3 bilhões. Nove anos depois, já montava a US$ 14 bilhões. Em 1978, chegou a US$ 52 bilhões; saltou para US$ 72 bilhões em 1980 e para US$ 115 bilhões em 1989. Em 1994, no início do governo Fernando Henrique Cardoso, alcançou US$ 146 bilhões. Já era um número exagerado, mas hoje essa dívida está batendo em US$ 235 bilhões!
O mais curioso é que, somente de 1989 a 1997, o Brasil já desembolsou, a título de juros e amortizações, US$ 216 bilhões. Ou seja, a dívida era de US$ 115 bilhões, pagamos US$ 216 bilhões e continuamos devendo US$ 235 bilhões. Apenas em 1998, desembolsamos, a título de juros, o equivalente ao orçamento anual do Ministério da Saúde: US$ 16 bilhões.
O mais recente ciclo de endividamento externo conseguiu a proeza de nem sequer deixar sua marca em obras ou realizações palpáveis. A dívida foi torrada no financiamento de reservas cambiais e no consumo de automóveis, eletroeletrônicos, macarrão, trigo, algodão e uma série de quinquilharias.
O resultado? A destruição da indústria nacional e milhões de desempregados nas ruas, além da entrega do patrimônio público -sob o pretexto de abater parcelas das dívidas- a conglomerados sem nenhum compromisso com o desenvolvimento do país.
A chamada dívida interna, ou dívida em títulos, era de R$ 62 bilhões em 1993 e alcançou R$ 324 bilhões pouco antes da depreciação do real. Em 1997, o país gastou R$ 45 bilhões no pagamento de seus juros. De janeiro a novembro de 1998, esse total saltou para R$ 66 bilhões; neste ano, ele irá se agravar com a desvalorização. É uma conta claramente impagável.
No plano internacional, a revisão radical dessa questão tem ganhado fortes adeptos. O próprio papa João Paulo 2º, seguindo a tradição cristã do perdão sistemático das dívidas, já lançou a campanha "Jubileu 2000". Ela prega a suspensão dos débitos externos de todos os países do Terceiro Mundo.
No Brasil, várias entidades, como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a Cese (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), o Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), a Cáritas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a CMP (Central de Movimentos Populares) e o IAB (Instituto dos Advogados do Brasil), estão promovendo uma campanha para julgar política, econômica e eticamente esses débitos. A campanha culminará no Tribunal da Dívida Externa, a ser realizado de amanhã a 28 de abril, no teatro João Caetano, no Rio.
Ao fechar os olhos para o problema do endividamento e defender apenas os interesses dos especuladores e financistas, o governo Fernando Henrique Cardoso precisa ser julgado pelo povo o mais breve possível. E que não venham se escudar nos resultados eleitorais: dos 106 milhões de eleitores brasileiros, só 35 milhões se iludiram com ele. A esta altura, até eles devem estar convencidos da manipulação que sofreram.
João Pedro Stedile, 44, economista e especialista em economia agrária, é membro da direção nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
José Albino de Mello, 42, metalúrgico, é membro da direção nacional da Central de Movimentos Populares.


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