São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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ILUDINDO O MUNDO

Os relatórios do Comitê de Inteligência do Senado americano e do Comitê Butler, do Reino Unido, sintetizam as investigações sobre as "falhas de inteligência" que sustentaram o principal argumento para a invasão do Iraque: o suposto arsenal de armas de destruição em massa do regime de Saddam Hussein. Os dois documentos, trilhando caminhos distintos, oferecem conclusões similares. Eles revelam com riqueza de detalhes como as agências de espionagem dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha produziram provas errôneas -coincidentemente, as que o presidente George Bush e o premiê Tony Blair desejavam obter.
Um trecho do relatório do Senado dos EUA registra que, em fevereiro de 2003, um agente da CIA profundamente envolvido com o Iraque procurou seus superiores para contestar a credibilidade da denúncia que o secretário de Estado Colin Powell faria perante a ONU, de que Saddam Hussein dispunha de uma frota de laboratórios móveis de armas biológicas. A denúncia amparava-se em uma fonte com o codinome Curve Ball, que o agente sabia não ser confiável. Suas advertências chocaram-se, porém, com a seguinte resposta: "Tenhamos em mente o fato de que essa guerra vai ocorrer, independente do que Curve Ball disse ou não disse e que as autoridades no comando provavelmente não estão muito interessadas na questão de Curve Ball saber ou não sobre o que está falando".
Nos dois lados do Atlântico, os chefes dos espiões engajaram-se no que o relatório do Senado qualificou como "pensamento coletivo" e que Hans Blix, o antigo chefe dos inspetores da ONU no Iraque, definiu como "inteligência baseada na fé". As informações deveriam ser moldadas à teoria prévia, recorrendo-se à seleção, interpretação e mesmo distorção. Naquele momento, as "autoridades no comando" precisavam de um discurso, não de investigação.
Não existem, ainda, provas de que Bush ou Blair falsearam deliberadamente as informações. Eles, porém, não podem fugir à responsabilidade política de, por meio do ultimato a Saddam Hussein, e desafiando o Conselho de Segurança, terem interrompido o trabalho de campo dos inspetores da ONU, que possivelmente descortinaria a verdade.
O fato incontornável é que o argumento central para a invasão -o arsenal de armas de destruição em massa do Iraque- era falso e isso poderia ter sido comprovado. Por si só, esse fato evidencia a terrível ameaça contra a segurança internacional representada pelos princípios do unilateralismo e da "guerra preventiva" proclamados na chamada Doutrina Bush.
A investigação britânica foi concluída, mas a norte-americana não. O comitê do Senado levantou indícios de que os dossiês preparados pelas agências de inteligência podem ter sido "esquentados" e prepara agora um relatório conclusivo sobre o assunto. Convenientemente para Bush, sua publicação está prevista apenas para depois das eleições presidenciais de novembro.


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