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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Senado deve aprovar a regulamentação do ato médico?
NÃO
Universos mutáveis
ANNA VERONICA MAUTNER
Sou contra a Lei do Ato Médico e
contra todas as tentativas de estabelecer rigidez, fixar limites a universos
que, por definição, são mutáveis e móveis. Há muitas décadas interagimos,
nós, profissionais das várias áreas da
saúde, fazendo e refazendo pacificamente as fronteiras que nos põem em
contato.
Em certos serviços de saúde, o médico
é o centro, pela própria natureza do serviço a ser prestado -por exemplo, nos
hospitais gerais, nos prontos-socorros,
em postos de saúde. Em outros tipos de
serviço, que tratam igualmente de saúde, o fisioterapeuta, por exemplo, pode
ter uma palavra mais certeira. É o caso
da medicina esportiva.
O confronto maior e mais agudo fica
na área das "psi". A fronteira entre o
corpo e o comportamento, realizada pelo mesmo corpo, é difícil de estabelecer:
eu mesma não vejo vantagem em fazê-lo, já que até hoje sua falta não vem atrapalhando. Até onde o que comumente
se chama de malcriação pode ser definido como comportamental ou fisiológico? Bem difícil de definir.
É a respeito dessa realidade, sempre
ambígua, que o Senado discute o projeto de Lei do Ato Médico. Querem, alguns médicos, nem todos, que de uma
vez por todas, em todos os lugares, seja
o médico responsável por saúde e pronto. É saúde, é responsabilidade do médico -mesmo que se trate de problemas
de aprendizagem, por exemplo. Pela
proposta ora no Senado, a decisão entre
orientar para um psicopedagogo, para
um psicoterapeuta, ou terapeuta ocupacional, ou mesmo fisioterapeuta ou fonoaudiólogo, caberia ao médico. Este
poderia ser indiferentemente pediatra,
neurologista, psiquiatra, enfim, entre
médicos, valem todos.
Será que os seis anos da faculdade de
medicina são suficientes para habilitar
por lei alguém a tomar esse tipo de decisão? O que sabe um jovem médico recém-formado, sobre o campo médico
da fisiatria ou da foniatria? Ele terá que
fazer mais quatro anos de curso para ser
considerado foniatra. De acordo com a
nova lei, recebeu o canudo no sexto ano,
ele está de imediato apto a decidir, portanto diagnosticar, quem irá se tratar
com psicopedagogo e/ou fonoaudióloga. Claro está que o jovem médico, se
for responsável, não fará isso sem a suficiente formação, mas isso é de foro íntimo, a lei lhe faculta.
Sou contra soluções simplistas para
problemas complicados. Na área do
comportamento e da dor psíquica, a
questão do espaço e do autoritarismo é
ainda mais complicada do que na educação ou ortopedia. Há muitas décadas,
psiquiatras, psicólogos e, em certos países, assistentes sociais exercem várias
formas de terapia psicológica. Isso varia
de país a país, de cultura a cultura. É importante notar que existem áreas que
são mais da competência de um do que
de outro. O médico pode aprender, se
quiser, a aplicar e avaliar testes psicológicos. Mas por que o faria se existem
psicólogos com anos de aula sobre isso?
O psicólogo, por outro lado, por currículo, saberia um quase nada sobre farmacologia. No tocante à indicação farmacológica, os médicos estão protegidos, pois ao psicólogo e outros profissionais da área é vedado receitar. E o
psicólogo está protegido no que diz respeito à aplicação e interpretação de testes, pois isso é de sua competência exclusiva, por lei.
Quero ressaltar que, entre médicos e
psicólogos, fisios, fonos, a vida vem sendo razoavelmente tranqüila. O dia-a-dia, na experiência institucional e na clínica privada, vem definindo áreas pelo
exercício cotidiano da profissão, com
insatisfações de maior ou menor grau,
sem que a turbulência, mínima, prejudique a quem mais nos interessa proteger. Nos meus mais de 30 anos de trabalho na área, não vivenciei nenhuma
guerra, nem de palavras nem de petardos. As diferenças ficam muito mais no
campo das ideologias elegidas, das simpatias pessoais do que questões legais.
Já vivi e lutei contra a Lei Julianelli. Essa tempestade passou. Eis-me agora
diante não de um homem/lei, mas de
um título: ato médico. Não quero recorrer a argumentos legais, prefiro ater-me
à evocação dessas décadas de convivência interdisciplinar. Médicos e paramédicos vêm convivendo de forma pacífica, às vezes um pouco tensa. Hoje, por
exemplo, as neurociências estão modificando muitos procedimentos tanto de
psicólogos quanto de psiquiatras, tanto
de ortopedistas quanto de terapeutas
ocupacionais. Na década de 70, a área
das terapias corporais sofreu uma grande influência oriental, sem outra conseqüência que não o aperfeiçoamento do
atendimento.
Quando um novo saber desponta, as
fronteiras de contato se refazem candidamente, diante dos olhos de quem quiser ver. Assim estamos há décadas, sem
ruptura. E não foram poucos os recursos alternativos, absorvidos e oficializados: veja-se a acupuntura. A quem serviria essa intervenção invasiva num
campo social em que a convivência vem
se mostrando pacífica, adequada e útil?
Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é colunista do Folha Equilíbrio.
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