São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Medidas restritivas a obras de arte com teor político configuram censura?

SIM

Ação equivale a roubar o direito de pensar

ALEXANDRE DE MORAES

A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não só as publicações consideradas inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo.
A história demonstra que a liberdade de expressão tem lugar central na constitucionalização dos direitos fundamentais e, junto com a universalização da educação e do direito de sufrágio, como afirmado por Thomas Jefferson, é um dos pilares do governo republicano.
Isso porque pretender suprimi-la é tentar alcançar a proibição ao próprio pensamento, como afirmado por Kant ("O poder que retira dos homens a liberdade de expressar publicamente seus pensamentos, rouba também a liberdade de pensar") e, consequentemente, tentar obter a unanimidade autoritária, arbitrária e irreal.
A proteção constitucional engloba não só o direito de se expressar, inclusive artisticamente, mas também o direito de ouvir, assistir, ler, analisar e criticar publicações, inclusive repudiando aquelas caracterizadas por mensagens agressivas e de extremo mau gosto.
Exigir da 29ª Bienal que impedisse a exposição da série "Inimigos", do artista plástico Gil Vicente, seria autorizar a censura prévia e relembrar os tempos de Carlos 5º, em 1529, que estabeleceu tal medida a todas publicações em território alemão, ou, ainda, do famoso "Index Expurgatorius", de 1559.
No espaço público, lembra Hegel, devem coexistir todas as formas de verdade e de falsidade. Não por outro motivo, a liberdade de manifestação de pensamento é mais ampla que o direito de informar, pois "a primeira deve ser reconhecida inclusive aos mentirosos e loucos, enquanto o segundo, diferentemente, deve ser objetivo, proporcionando informação exata e séria" (Revel).
Obviamente que, assim como os demais direitos fundamentais, o exercício da liberdade de expressão não é absoluto, sofrendo restrições perante a análise de compatibilidade e razoabilidade com o conjunto das previsões constitucionais, entre elas a proibição ao racismo e a qualquer forma de preconceito, a proteção à criança e ao adolescente, além da possibilidade de indenização por danos morais e à imagem, consagrando ao ofendido a total reparabilidade em virtude de prejuízos sofridos.
A constante reafirmação da livre expressão de pensamento e de opinião constitui verdadeiro instrumento constitucional de garantia da autodeterminação democrática da sociedade, pois não se destina somente à garantia da expressão individual, mas também à garantia do bom funcionamento e controle do sistema político, com respeito ao pluralismo de ideias e fortalecimento dos debates.
À sociedade, a Constituição garante a liberdade de expressão; ao artista, o direito de expor suas obras; ao público, o direito de aprová-las ou repudiá-las; aos ofendidos, o direito de pleitear indenização por danos morais; e ao Judiciário, o dever de verificar se houve desrespeito à dignidade da pessoa humana.
Essa é a força do Estado de Direito. Essa é a beleza da democracia.


ALEXANDRE DE MORAES é professor doutor e livre-docente de direito constitucional da USP. Foi secretário estadual de Justiça de São Paulo (2002-05), membro do Conselho Nacional de Justiça e secretário municipal de São Paulo de Transportes e Serviços (gestão Kassab). É autor de "Direito Constitucional" (ed. Atlas), entre outras obras.

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