São Paulo, quinta-feira, 25 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A greve do Judiciário e o radicalismo

RUBENS APPROBATO MACHADO E MARCELO FIGUEIREDO

A sociedade paulista é vítima da greve dos servidores do Poder Judiciário. A mais longa greve do Poder Judiciário não pode continuar, a despeito das razões legítimas que detonaram o movimento e das justificativas apresentadas pelo Tribunal de Justiça para não atender às reivindicações dos servidores. O movimento mostra, em uma análise mais detida, a grave crise que se instalou entre os Poderes do Estado.
O denominado princípio da separação de Poderes vêm sendo invocado de forma distorcida. De Aristóteles a Montesquieu, o princípio reclama o controle do Poder pelo próprio Poder. De sua noção original, evoluiu para a noção de colaboração de Poderes. Ou, como quer a Constituição (art. 2º), "independência e harmonia". O canal de diálogo entre os agentes políticos dos três Poderes deve, a bem do serviço público e da coletividade, estar sempre aberto.
Não há independência isolada da harmonia. Nenhum Poder do Estado pode, invocando sua independência, isolar-se, porque, no mínimo, estaria frustrando o necessário e difícil equilíbrio entre os Poderes e as funções do Estado. O episódio da greve demonstra, claramente, o radicalismo que tomou conta das partes envolvidas ao interpretarem o princípio da separação de Poderes.
Os servidores apresentam os percentuais de reposição de perda salarial. O Tribunal de Justiça, por sua vez, invoca o limite de 6% da receita líquida (teto), presente na Lei de "Responsabilidade" Fiscal, como fator determinante de impedimento legal absoluto para atendimento da reivindicação. O Executivo, cômoda e retoricamente, apóia-se na "independência" dos Poderes para não enfrentar a questão. E a greve segue paralisando a prestação e a distribuição de Justiça em uma país de carências sociais insuportáveis.


No Estado de Direito, lei nenhuma pode ter o condão de sufocar o regular funcionamento do Poder Judiciário
Nessa perspectiva, todos teriam razão -ou, ao contrário, todos estariam enganados, frustrando a coletividade. Parece que a segunda hipótese é a mais provável. Nada justifica a paralisação das negociações, somente o radicalismo egoísta de posições políticas míopes. É preciso que se diga. Lei nenhuma, no Estado de Direito, pode ter o condão de sufocar o regular funcionamento do Poder Judiciário. O Poder Judiciário paulista e seus servidores não podem ser acusados de irresponsabilidade fiscal.
O Executivo e o Legislativo têm o dever constitucional de discutir seriamente o Orçamento e as incongruências da Lei de "Responsabilidade" Fiscal. Todos os Poderes, sem exceção, carregam as suas responsabilidades na greve do Judiciário. É preciso ter dignidade e espírito público para, com humildade, enfrentar essa situação. Por quanto tempo os chefes de Poderes ficarão atribuindo a responsabilidade a outros? O Judiciário precisa retomar imediatamente as negociações. O Legislativo e o Executivo não podem se esquecer de seu dever constitucional de receber o Judiciário e realizar concessões orçamentárias, realizando interpretação razoável e proporcional. E os grevistas devem ceder com dignidade, conscientes de que prestam um serviço público essencial.
No Estado de Direito, nada pode ser mais odioso do que a denegação de justiça. Não há indenização que repare a injustiça de um direito sonegado, suprimido. Quantos cidadãos diariamente deixam de realizar suas atividades ou de exercer seus legítimos direitos por causa da greve? Quantas almas encarceradas deixam de ver o sol da liberdade?
Não há responsabilidade fiscal que justifique a intolerância, a irrazoabilidade e o temor reverencial ao positivismo cego de valores da cidadania. Temos esperança na lucidez das lideranças e nas autoridades do Estado de São Paulo e do Supremo Tribunal Federal, o qual, a despeito de haver indeferido a medida cautelar que discutia a constitucionalidade do artigo 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal, inviabilizando inclusive uma nova ação de inconstitucionalidade na Suprema Corte, pode, no mérito, reconhecer a flagrante violação do princípio federativo que a lei fiscal encerra.
Aguarda-se, finalmente, que os grevistas tenham consciência de que suas reivindicações salariais podem ser justas, mas devem saber que servidores de um serviço essencial devem ter um compromisso maior com a cidadania e com o respeito ao regime democrático.


Rubens Approbato Machado, 68, é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Marcelo Figueiredo, 42, é advogado, professor de direito da PUC-SP e secretário da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.


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