São Paulo, quinta-feira, 25 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Leis que não favorecem as exportações

JOÃO GRANDINO RODAS

No atual esforço do governo em reduzir os óbices às exportações, há um fator de fácil remoção, mas que está intocado: as leis brasileiras que regulam os contratos internacionais.
São aplicáveis ao comércio internacional três espécies de regras jurídicas: de um lado, os Estados editam leis destinadas a reger obrigações internacionais -leis essas não são necessariamente coerentes com as dos demais; de outro, há inúmeros tratados contendo regras comerciais internacionais; e, finalmente, há as entidades corporativas privadas dos diversos setores do comércio internacional, que traduzem usos e costumes internacionais ("lex mercatoria") em contratos-tipo, muito utilizados.
É usual que os países importadores exijam que o contrato internacional de importação seja submetido a seu próprio direito nacional ou a direito conhecido universalmente. Assim, muitas vezes os contratos de exportação brasileiros acabam por ser regidos por direito estrangeiro, sendo a solução de eventuais litígios entregues não ao Judiciário nacional, mas à arbitragem.
As leis brasileiras sobre contratação internacional, entretanto, têm influência sobre a dinâmica de nossas exportações por duas razões: a possibilidade de a parte brasileira poder escolher lei estrangeira para reger o contrato acaba por depender da própria lei brasileira e o fato de a frequente sujeição do contrato à arbitragem não ter o condão de afastar cabalmente a jurisdição dos tribunais brasileiros.
As regras brasileiras sobre contratações internacionais, contidas na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), de 1942, além de estarem desatualizadas, já nasceram defeituosas. O princípio do reconhecimento universal das pessoas jurídicas, independentemente do sistema jurídico em que tenham sido constituídas, teve de ser deduzido pela jurisprudência, pois o artigo 11 não é claro.
Não figura na LICC, a quase milenar regra "locus regit actum", segundo a qual, observando-se as regras jurídicas, relativas à forma do contrato, vigentes na localidade onde o contrato é concluído, os demais ordenamentos jurídicos o reconhecerão como válido formalmente, tendo cabido ao Judiciário sanar a lacuna. O artigo 9º da LICC faz com que, a rigor, não possam as partes, exercendo a autonomia da vontade, escolher a lei aplicável à substância contratual.


Deveríamos ter duas leis autônomas: para a aplicação de normas jurídicas e para o direito internacional privado
O mais grave defeito, entretanto, repousa na lei fixada para reger a substância do contrato, que é seu âmago e razão de ser. No que tange o contrato entre presentes, aquele que é negociado e assinado pelas partes, frente a frente, não se faz a clássica distinção: lei da constituição da obrigação regulando validade e efeitos do contrato e lei do lugar de sua execução regendo o seu cumprimento.
Essa distinção foi feita pretorianamente. Aspecto que, hodiernamente, adquire grande relevância é o do contrato entre ausentes, por enquadrarem-se nessa categoria os realizados por via eletrônica. Se a solução da LICC já era insatisfatória em 1942, época de raros contratos propostos por via epistolar ou telegráfica, que dizer na era atual, em que se negocia ciberneticamente, com a velocidade da luz?
A LICC, como a sua predecessora, a Introdução ao Código Civil, de 1916, é uma lei que possui regras de aplicação de normas jurídicas, de direito intertemporal e de direito internacional privado. É formalmente ligada ao Código Civil, embora aplicável a todas as normas jurídicas pátrias.
Duas tentativas para a sua substituição frustraram-se. A primeira, na década de 80, quando o Congresso Nacional arquivou o projeto Valladão, que era uma lei autônoma intitulada Código de Aplicação de Normas Jurídicas, cujo anteprojeto havia sido originalmente apresentado nos anos 60. A última, em 1996, quando o Executivo retirou para reexame o projeto de lei nº 4.905/95. Na discussão que se seguiu à aprovação pelo Congresso Nacional do novo Código Civil, surpreendentemente não houve menção à LICC.
A substituição agora da LICC, além de significar um alento extra às exportações, pela modernização das leis brasileiras relativas às obrigações internacionais, teria o benefício adicional de livrar o novel Código Civil de seu inadequado anexo. Deixaríamos de ser os únicos a obedecer ao modelo alemão de 1896, que inspirou Bevilacqua e se manteve nas duas leis de introdução que o Código Civil já teve.
Nessa linha, seguindo a melhor tendência do direito comparado, deveríamos possuir duas leis autônomas: uma englobando a aplicação de normas jurídicas e o direito intertemporal e outra de direito internacional privado.
Caberia ao governo federal nomear duas comissões para preparar os respectivos anteprojetos, que, após consulta pública, seriam encaminhados ao Congresso Nacional.


João Grandino Rodas, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e presidente da Comissão Jurídica Interamericana da OEA. e-mail: rodas@usp.br


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