São Paulo, quinta-feira, 25 de outubro de 2007

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Militarismo anacrônico

MARCELO NEVES

Só encontrei cinco países, além do Brasil, que mantêm o controle total do tráfego aéreo sob responsabilidade de militares

A RECENTE crise no setor aéreo põe à luz a questão da vinculação da aviação civil, especialmente do controle do tráfego aéreo, à Aeronáutica. Indaga-se sobre a consistência constitucional e a adequação social da militarização desse setor altamente globalizado.
Em relação à consistência constitucional, verifica-se que, conforme o artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Dentro da orientação de estrita delimitação das atribuições das Forças Armadas com a redemocratização assentada na Constituição Federal de 1988, é discutível a ampliação de suas funções no plano da legislação infraconstitucional.
No entanto, a legislação brasileira conduz à hipertrofia das Forças Armadas por meio da militarização de um setor civil em prejuízo da concretização do modelo constitucional de delimitação estrita de suas funções.
Mais problemática é a questão relativa à capacidade de uma das Forças Armadas, a Aeronáutica, responder às exigências da aviação civil em uma sociedade global complexa.
Neste particular, é relevante considerar as soluções do problema no direito comparado. Só encontrei cinco países, além do Brasil, que mantêm o controle total do tráfego aéreo sob responsabilidade de militares: Eritréia, Etiópia, Somália, Uruguai e, em transição para a desmilitarização, Argentina.
Entre os países desenvolvidos da Europa Ocidental e América do Norte, a aviação civil está fora do campo de competência do setor militar. Alguns exemplos são ilustrativos.
Nos Estados Unidos, maior potência militar e bélica, a pedra fundamental da regulação da aviação civil foi lançada em 1926, quando o setor foi submetido ao Departamento de Comércio. Em 1958, foi criada, no âmbito desse departamento, a Agência Federal de Aviação, que teve seu nome alterado para Administração Federal da Aviação (FAA) em 1967, quando foi vinculada ao Departamento dos Transportes.
Em nenhum momento, nos EUA, país que superestima a "defesa da pátria", foi atribuído às Forças Armadas o papel de regular ou operar a aviação civil, inclusive o controle do tráfego aéreo, salvo a interferência em período de guerra.
Também na França o controle do tráfego aéreo e a aviação civil em geral se encontram fora do âmbito de atribuições das Forças Armadas.
A desmilitarização do controle do tráfego aéreo na Itália ocorreu em 1982, e na Suíça foi concluída em 2001. Na Alemanha, desde 1993, o controle do tráfego aéreo é realizado integralmente pelo setor civil, inclusive em relação aos vôos militares. E, no Canadá, o controle é um serviço prestado por empresa privada.
As soluções do direito comparado constituem fortes indícios de que o modelo brasileiro é inadequado às exigências da sociedade atual. No direito dos países desenvolvidos, que constituem os padrões de qualidade e segurança da aviação civil, esta faz parte do âmbito de competências da administração civil e, em regra, de entidade da administração indireta.
A verificação de evidências no plano comparativo desaconselha que o Brasil insista na opção de manter as funções referentes à aviação civil na competência da Aeronáutica.
Essa situação prejudica a integração internacional da aviação civil e, particularmente, do controle do tráfego aéreo brasileiros. Isso porque a racionalidade do sistema militar é bem diversa da que orienta os setores civis da sociedade e do Estado.
O controle militar do tráfego aéreo se tornou obsoleto, não correspondendo aos desafios da aviação civil na sociedade de hoje. Salvo as exceções de países que não constituem padrão de qualidade e segurança na aviação civil, os países que adotaram no passado o controle militar do tráfego aéreo migraram para o regime de controle civil.
Enfim, a atribuição da aviação civil, especialmente do controle do tráfego aéreo, à Aeronáutica brasileira é inadequada à sociedade mundial do presente e, em particular, à aviação civil globalizada. O caminho juridicamente consistente e socialmente adequado é a desmilitarização do setor. Não é admissível que a segurança e a vida de cidadãos brasileiros e estrangeiros fiquem à mercê de um militarismo anacrônico.


MARCELO NEVES, 50, advogado, doutor em direito pela Universidade de Bremen (Alemanha) e livre-docente pela Universidade de Friburgo (Suíça), é professor de teoria do direito da PUC-SP e do IDP-DF. Foi professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Frankfurt (Alemanha). É autor, entre outras obras, de "A Constitucionalização Simbólica".

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