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Militarismo anacrônico
MARCELO NEVES
Só encontrei cinco países, além do Brasil, que mantêm o controle total do tráfego aéreo sob responsabilidade de militares
A RECENTE crise no setor aéreo
põe à luz a questão da vinculação da aviação civil, especialmente do controle do tráfego aéreo, à
Aeronáutica. Indaga-se sobre a consistência constitucional e a adequação social da militarização desse setor
altamente globalizado.
Em relação à consistência constitucional, verifica-se que, conforme o artigo 142 da Constituição, as Forças
Armadas "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem".
Dentro da orientação de estrita delimitação das atribuições das Forças
Armadas com a redemocratização assentada na Constituição Federal de
1988, é discutível a ampliação de suas
funções no plano da legislação infraconstitucional.
No entanto, a legislação brasileira
conduz à hipertrofia das Forças Armadas por meio da militarização de
um setor civil em prejuízo da concretização do modelo constitucional de
delimitação estrita de suas funções.
Mais problemática é a questão relativa à capacidade de uma das Forças
Armadas, a Aeronáutica, responder
às exigências da aviação civil em uma
sociedade global complexa.
Neste particular, é relevante considerar as soluções do problema no direito comparado.
Só encontrei cinco países, além do
Brasil, que mantêm o controle total
do tráfego aéreo sob responsabilidade
de militares: Eritréia, Etiópia, Somália, Uruguai e, em transição para a
desmilitarização, Argentina.
Entre os países desenvolvidos da
Europa Ocidental e América do Norte, a aviação civil está fora do campo
de competência do setor militar. Alguns exemplos são ilustrativos.
Nos Estados Unidos, maior potência militar e bélica, a pedra fundamental da regulação da aviação civil
foi lançada em 1926, quando o setor
foi submetido ao Departamento de
Comércio. Em 1958, foi criada, no âmbito desse departamento, a Agência
Federal de Aviação, que teve seu nome alterado para Administração Federal da Aviação (FAA) em 1967,
quando foi vinculada ao Departamento dos Transportes.
Em nenhum momento, nos EUA,
país que superestima a "defesa da pátria", foi atribuído às Forças Armadas
o papel de regular ou operar a aviação
civil, inclusive o controle do tráfego
aéreo, salvo a interferência em período de guerra.
Também na França o controle do
tráfego aéreo e a aviação civil em geral
se encontram fora do âmbito de atribuições das Forças Armadas.
A desmilitarização do controle do
tráfego aéreo na Itália ocorreu em
1982, e na Suíça foi concluída em
2001. Na Alemanha, desde 1993, o
controle do tráfego aéreo é realizado
integralmente pelo setor civil, inclusive em relação aos vôos militares. E,
no Canadá, o controle é um serviço
prestado por empresa privada.
As soluções do direito comparado
constituem fortes indícios de que o
modelo brasileiro é inadequado às
exigências da sociedade atual.
No direito dos países desenvolvidos, que constituem os padrões de
qualidade e segurança da aviação civil, esta faz parte do âmbito de competências da administração civil e, em
regra, de entidade da administração
indireta.
A verificação de evidências no plano comparativo desaconselha que o
Brasil insista na opção de manter as
funções referentes à aviação civil na
competência da Aeronáutica.
Essa situação prejudica a integração internacional da aviação civil e,
particularmente, do controle do tráfego aéreo brasileiros. Isso porque a
racionalidade do sistema militar é
bem diversa da que orienta os setores
civis da sociedade e do Estado.
O controle militar do tráfego aéreo
se tornou obsoleto, não correspondendo aos desafios da aviação civil na
sociedade de hoje. Salvo as exceções
de países que não constituem padrão
de qualidade e segurança na aviação
civil, os países que adotaram no passado o controle militar do tráfego aéreo migraram para o regime de controle civil.
Enfim, a atribuição da aviação civil,
especialmente do controle do tráfego
aéreo, à Aeronáutica brasileira é inadequada à sociedade mundial do presente e, em particular, à aviação civil
globalizada. O caminho juridicamente consistente e socialmente adequado é a desmilitarização do setor.
Não é admissível que a segurança e
a vida de cidadãos brasileiros e estrangeiros fiquem à mercê de um militarismo anacrônico.
MARCELO NEVES, 50, advogado, doutor em direito pela
Universidade de Bremen (Alemanha) e livre-docente pela
Universidade de Friburgo (Suíça), é professor de teoria do
direito da PUC-SP e do IDP-DF. Foi professor na Faculdade
de Ciências Sociais da Universidade de Frankfurt (Alemanha). É autor, entre outras obras, de "A Constitucionalização Simbólica".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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