São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Cepal e as crises externas


Cabem à Cepal só a análise dos fatos e a proposição de medidas. Sua execução é decisão soberana de cada país


RENATO BAUMANN

Com um seminário internacional na sua sede, em Santiago, serão comemorados amanhã os 50 anos da Cepal. Organismo das Nações Unidas, ela foi criada por iniciativa de governos latino-americanos preocupados com a inserção internacional de suas economias na reconstrução do pós-guerra e com a superação das dificuldades associadas ao desenvolvimento econômico.
A análise dos efeitos das variações do mercado externo sobre o desempenho de países em desenvolvimento encontra na Cepal um formulador sem paralelo. Ela foi pioneira em mostrar que a recorrência das crises está ligada às características da estrutura produtiva interna. Sempre enfatizou a necessidade de essas economias adaptarem estrutura produtiva e instituições para lidar com aqueles efeitos, criando condições internas para absorver progresso técnico, precondição para a competitividade. Essa preocupação pode ser ilustrada por análises e recomendações feitas em seis momentos históricos distintos.
Em 1951, Raúl Prebisch (economista argentino, morto em 1986, que dirigiu a Cepal de 1948 a 1962) chamava a atenção para o fato de que, "mediante a industrialização, os países latino-americanos tendem a crescer em ritmo superior ao de suas exportações. Como a capacidade para importar depende fundamentalmente dessas exportações, é óbvio que a renda real desses países tende, em geral, a crescer com mais intensidade que sua capacidade para importar". Ou seja, havia preocupação explícita com a estrutura tanto das importações quanto das exportações.
Em 1961, Prebisch dizia: "A excessiva orientação da indústria para o mercado interno é consequência da política de desenvolvimento seguida nos países latino-americanos e da falta de estímulos internacionais para suas exportações industriais. A política de desenvolvimento tem sido discriminatória em relação às exportações". Apesar disso, quis a tradição que a Cepal fosse vista como sinônimo de defesa de uma industrialização favorecida por barreiras indiscriminadas contra importados.
Em 1978, a Cepal alertava: "O endividamento com que hoje se depara a região, como consequência do sistema de financiamento empregado, condiciona a evolução do balanço de pagamentos de forma distinta da do começo da década, pois o montante dos serviços compromete parte importante dos atuais recursos de exportação. Esse compromisso obriga a América Latina a fomentar intensamente as exportações, readequar novamente a estrutura produtiva para reduzir importações e criar, portanto, novas formas de inserção na economia e no comércio mundiais". Quatro anos depois, teve início a chamada "crise da dívida", que tanto afetou as economias da região.
Em 1984, a Cepal, preocupada com o formato das negociações da dívida externa, afirmava haver dois aspectos de validade mais geral: "O primeiro é a severa limitação que o atual entorno externo impõe à política econômica na grande maioria dos países da região. O segundo (...) refere-se à natureza excessivamente agregada das políticas econômicas aplicadas para reduzir o desequilíbrio externo e ao custo que implicam, em termos de redução da atividade econômica e do emprego. (...) A ênfase no tema do ajuste (...) é um processo que está vinculado mais estreitamente à política de curto prazo e aos problemas da conjuntura do que à estratégia de longo prazo e às mudanças estruturais que caracterizam e tornam possível o processo de desenvolvimento (...), (subestimando) a importância desses últimos aspectos". Como os indicadores dos anos 80 mostram inequivocamente, as economias da América Latina foram duramente afetadas não só na capacidade de pagamento, mas sobretudo na geração de condições para superar essas dificuldades.
No início de 1994, a Cepal apresentou em sua assembléia bienal documento em que manifestava preocupação com a afluência de capitais à região: "O acesso aos mercados financeiros internacionais (...) é uma oportunidade que pode ser aproveitada positivamente, à medida que a política econômica interna logre os seguintes objetivos: a) assegurar acesso estável aos fluxos de capital externo, evitando que eles contribuam para distorcer preços-chave na economia, como a taxa de câmbio e os juros; b) canalizar os recursos em proporções importantes para investimentos eficientes, que fortaleçam a competitividade internacional (...); c) fortalecer a supervisão e a regulação das instituições financeiras, particularmente de tipo prudencial, para assegurar que o aumento dos ativos e passivos gerado pelos fluxos externos não exerça pressão sobre sua solvência futura".
Apesar de consideradas sensatas, essas recomendações tiveram contrapartida limitada nas políticas adotadas. Em dezembro daquele ano, houve novas turbulências financeiras na região; e o tema voltou ao noticiário após a crise asiática, em outubro de 1997.
A propósito da crise, a Cepal tem mostrado, desde abril deste ano, preocupação com a inexistência de instituição internacional que trabalhe para evitar auges financeiros insustentáveis, recomendando dois conjuntos de proposições: 1) nacionalmente, mecanismos para evitar excessos de gastos decorrentes de receitas transitórias, política monetária que desencoraje influxos excessivos de capital de curto prazo, regulação prudencial do sistema financeiro; 2) internacionalmente, expansão considerável dos recursos do FMI, melhora dos acordos internacionais de supervisão, regulação de crédito externo de curto prazo nos países em desenvolvimento, com imposto internacional sobre transações com divisas.
Para os países em desenvolvimento, recomendam-se: a) solidez macroeconômica, melhora da regulação e da supervisão financeira internas; b) novos instrumentos orientados para reduzir a vulnerabilidade em face dos ciclos financeiros internacionais, sobretudo bom manejo fiscal e creditício nas fases expansionistas do ciclo econômico.
Esses episódios são ilustrativos do esforço de análise sistemática dos processos de desenvolvimento das economias da América Latina e do Caribe. Cabem à Cepal, porém, só a análise dos fatos e a proposição de medidas. Sua execução é decisão soberana de cada país.


Renato Baumann, 47, doutor em economia pela Universidade de Oxford (Inglaterra), é diretor do escritório brasileiro da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), organismo da ONU.




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