São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sob empréstimo e sob tortura

HÉLIO MATTAR

Na entrada do prédio do Unicef, em Nova York, uma frase sugestiva nos lembra de que "tomamos a Terra emprestada às nossas crianças e adolescentes". Portanto nos lembra de que devemos respeito e cuidado a essas crianças e adolescentes, para que possam nos substituir adequadamente neste empréstimo eterno às futuras gerações.
Nenhum adulto deveria jamais perder esse conceito de vista, para não se permitir negligenciar a responsabilidade, inerente à sua condição de adulto, de zelar por seres humanos em formação. Não é à toa que o artigo 227 da Constituição Federal e o 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente determinam a responsabilidade da família, da comunidade e do poder público na garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
Por seu turno, os governos tomam o Estado de empréstimo por um período e devem respeito a essa delegação, legitimada pelo voto popular. No caso do Estado é, portanto, dupla a responsabilidade. E, quando falha, falha duplamente. Pelo que lhe compete enquanto parte adulta da população responsável pelas crianças e adolescentes e, também, enquanto poder constituído, responsável pela criação e implantação de políticas públicas que assegurem o bem-estar de todos, com total prioridade ao atendimento a crianças e adolescentes.
No caso dos adolescentes autores de ato infracional, é necessário que o governo de São Paulo atente para essa dupla delegação, respeitando seus direitos, preparando-os para serem protagonistas de seu destino e assumindo suas responsabilidades para com as próximas gerações. A receita para que isto se realize é simples: cumprir a lei. O que não vem acontecendo.
Embora reconheçamos o esforço em descentralizar as unidades da Febem, ainda que a uma velocidade totalmente inadequada e insuficiente, a existência de adolescentes em um presídio como o de Franco da Rocha fere frontalmente o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente e as resoluções do Conselho Nacional e do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente. E o fato de haver em Franco da Rocha instrumentos de tortura e evidências de sua prática, conforme verificado pelos promotores da Infância em visita àquela unidade nos últimos dias 30 e 31 de outubro, fere a própria dignidade humana.


A existência de uma unidade como a de Franco da Rocha coloca o próprio Estado em conflito com a lei


A presença de 320 adolescentes em Franco da Rocha é um desrespeito ao definido na resolução nº 46 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 40 internos por unidade. E esta não é a primeira vez que tal desrespeito é apontado. A visita constatou que suas dependências físicas não possuem condições mínimas de higiene e salubridade, com quartos escuros e mal ventilados, gradeados até o teto, com banheiros alagados, não separados das celas de dormir.
Os adolescentes, com faixa etária entre 14 e 21 anos, não estão separados pelos critérios de idade, compleição física e gravidade do ato infracional. Em resumo, um flagrante desrespeito ao artigo 123 do estatuto.
O artigo 124 do Estatuto da Criança e do Adolescente assegura ao adolescente o direito de receber visitas de sua família ao menos semanalmente. Para tanto, entende-se que ele deve estar internado próximo ao seu local de origem. Os promotores e os representantes do Judiciário verificaram que mais da metade dos adolescentes internados vem do interior e de outras cidades da região metropolitana de São Paulo, o que impossibilita a visita periódica de familiares. Foi observada ainda a insuficiência de quadro técnico para o atendimento aos adolescentes e suas famílias. E que esse atendimento é feito improvisadamente em um espaço reservado ao refeitório.
O adolescente em regime de internação tem o direito de receber escolarização, profissionalização, atividades culturais e de lazer. A unidade, segundo os promotores e juízes da Infância, apresenta insuficiência de cursos profissionalizantes para todos os internos. Eles verificaram também que muitos dos adolescentes permanecem ociosos, grande parte do dia trancados em seus quartos. Aqui, mais um artigo do estatuto desrespeitado: o de número 94, que define como obrigação das entidades de internação prover a educação e profissionalização dos adolescentes sob sua custódia e responsabilidade. Não é preciso dizer que trancafiar os jovens em solitárias também não se coaduna com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Isso tudo é especialmente surpreendente quando o próprio governador reeleito do Estado de São Paulo, em carta à Fundação Abrinq, que o havia instado a rever completamente a proposta da Febem, informou que não o faria pelo fato de todas as medidas já haverem sido tomadas nesse assunto em boa direção.
A internação de adolescentes autores de atos infracionais deve ser feita como medida extrema, a ser aplicada em casos considerados graves e constituindo na privação de um único direito: o de ir e vir. Ainda que em reclusão, devem ser assegurados pelo Estado a esses adolescentes os demais direitos, quais sejam, à vida, à saúde, à educação, ao desenvolvimento pessoal e social, à integridade física, moral e psicológica.
O Estado deve assegurar esses direitos a todos os adolescentes, incluídos os autores de atos infracionais. A existência de uma unidade como a de Franco da Rocha coloca, vergonhosamente, o próprio Estado em conflito com a lei.

Hélio Mattar, 55, engenheiro, é presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. Foi secretário do Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento (1999-2000).


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