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TENDÊNCIAS/DEBATES
Conspiração contra a impunidade
FLÁVIA PIOVESAN e SILVIA PIMENTEL
"Sobrevivi, posso contar." É este
o título do livro autobiográfico de
Maria da Penha, mulher, farmacêutica,
vítima de duas tentativas de homicídio
cometidas por seu então companheiro,
em seu próprio domicílio, em Fortaleza,
em 1983. Os tiros contra ela disparados
(enquanto dormia), a tentativa de eletrocutá-la, as agressões sofridas ao longo de sua relação matrimonial, embora
tenham deixado Maria da Penha paraplégica aos 38 anos, não foram capazes
de calar a sua voz.
Apesar de condenado pela Justiça local, após 15 anos o réu ainda permanecia em liberdade, valendo-se de sucessivos recursos processuais contra decisão
condenatória do Tribunal do Júri. A impunidade e a inefetividade do sistema
judicial diante da violência doméstica
contra as mulheres no Brasil motivou,
em 1998, a apresentação do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, por meio de petição
conjunta das entidades Cejil-Brasil
(Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e Cladem-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
Em 2001, após 18 anos da prática do
crime, em decisão inédita, a Comissão
Interamericana condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando ao Estado, dentre outras medidas, "prosseguir e intensificar o processo de reforma, a fim de romper com a
tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil"
(Informe 54/01, de 16/4/01).
A decisão fundamentou-se na violação, pelo Estado, dos deveres assumidos
em face da ratificação da Convenção
Americana de Direitos Humanos e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher, que consagram parâmetros
protetivos mínimos concernentes à defesa da dignidade humana. É a primeira
vez que um caso de violência doméstica
leva à condenação de um país, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Em 31/10/02, finalmente, houve a prisão do réu, no Estado da Paraíba. O ciclo
de impunidade se encerrava, após 19
anos. As demais medidas recomendadas pela Comissão Interamericana são
objeto de um termo de compromisso a
ser firmado entre as entidades peticionárias e o Estado brasileiro.
Ações estatais são urgentes e necessárias para o enfrentamento da violência
que acomete milhares de mulheres no
Brasil. O caso de Maria da Penha reflete
um padrão geral e sistemático de violência contra a mulher que em nosso
país tem como resposta, via de regra, a
impunidade. A violência contra a mulher é "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano
ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública,
como na esfera privada". A violência
baseada no gênero ocorre quando um
ato é dirigido contra uma mulher porque ela é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional.
Ações estatais são urgentes para enfrentar a violência que acomete milhares de mulheres no Brasil
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Dados da ONU demonstram que a
violência doméstica é a principal causa
de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos
no mundo, o que caracteriza a violência
contra a mulher como um fenômeno
generalizado, que alcança um elevado
número de mulheres.
É dever do Estado brasileiro implementar políticas públicas destinadas a
prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher, em conformidade com
as normas internacionais e constitucionais. Considerando o alto grau de complexidade dessa violência, essas medidas hão de compreender:
a) A adoção de legislação específica
sobre a matéria, regulamentando assim
o art. 226, parágrafo 8, da Constituição e
o art. 7º, "c", da convenção;
b) A instituição de mecanismos judiciais e administrativos, com a participação de organizações de mulheres, que
permitam uma justiça mais célere e
acessível e garantam assistência legal às
vítimas de violência, bem como medidas de proteção ou outros meios de
compensação justos e eficazes;
c) A criação de um sistema nacional
de dados sobre a violência doméstica,
com indicadores técnico-científicos que
avaliem a incidência da violência contra
a mulher e identifiquem o impacto e o
alcance de políticas públicas adotadas;
d) A realização de campanhas educativas de combate à violência doméstica;
e) A promoção de cursos de capacitação, para os operadores do direito, que
incorporem a perspectiva de gênero;
e) A previsão de serviços de apoio à vítima e de reabilitação para os perpetradores da violência doméstica;
f) E a adoção de um foco interdisciplinar para o enfrentamento da violência,
que permita o diálogo e a interação das
diversas agências envolvidas com a administração da justiça.
Que nesta data simbólica, 25 de novembro, em que se celebra o Dia Internacional de Combate à Violência contra
a Mulher, o caso de Maria da Penha possa romper com a invisibilidade que acoberta esse grave padrão de violência, de
que são vítimas tantas mulheres. Que
seja símbolo de uma necessária conspiração contra a impunidade.
Flávia Piovesan, 34, professora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, é procuradora do Estado e membro do Cladem-Brasil.
Silvia Pimentel, 62, professora de filosofia do
direito da PUC-SP, é coordenadora nacional do
Cladem-Brasil.
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