São Paulo, terça-feira, 25 de dezembro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Natal e a construção da paz

CLÁUDIO HUMMES

Ansiamos por um mundo de paz duradoura. Ousamos pensar, na passagem do milênio, que -quem sabe, por um milagre surpreendente- o novo milênio, o novo século, trouxesse a paz desejada. O mundo globalizado e interativo poderia tornar-se uma real oportunidade de paz e de mútua compreensão entre os povos e os indivíduos. Uma nova cultura poderia desenvolver-se, uma cultura da solidariedade, da colaboração pacífica entre as nações, do desenvolvimento integral de todas as gentes, sem exceção. Para essa meta já temos suficiente ciência, tecnologia e recursos materiais disponíveis.
Mas não! As guerras continuam a persistir. Os atentados terroristas de 11 de setembro devolveram-nos à dura realidade humana. Ao lado da característica execrável e extremamente desumana dos atentados, mostrou-se também a ironia das coisas, ou seja, enquanto a maior potência mundial planejava construir um escudo espacial contra mísseis intercontinentais, os agentes do terrorismo internacional penetraram naquele país como imigrantes ou turistas para preparar e realizar ali seu atentado, que mudou o mundo, usando apenas aviões cheios de gasolina e de passageiros inocentes e indefesos, transformando-os em bombas devastadoras e inauditamente cruéis. A guerra subsequente para caçar e responsabilizar os possíveis autores e mandantes do atentado traz consigo todas as características principais de outras guerras.
Com certeza o mundo tem direito de se defender do terrorismo. A questão é como fazê-lo sem prejudicar inocentes. Deveríamos usar primeiro, até o esgotamento, a negociação, o diálogo, a diplomacia e a busca da prisão e da responsabilização judicial dos responsáveis por terrorismo, bem como medidas severas de pressões não-bélicas para desestimular os países e os indivíduos que dão suporte ao terror.
Também não há dúvida de que a paz se constrói sobre a justiça. O respeito aos direitos de todos os povos, a criação de condições reais e concretas para que todas as nações, sem exceção, possam realizar seu desenvolvimento integral e a promoção da justiça e da solidariedade nas relações internacionais e dentro das nações entre ricos e pobres, tudo isso é um programa necessário, a ser realizado com urgência, se quisermos construir uma paz duradoura. Nações e indivíduos que não vêem nenhum futuro diante de si, que se percebem excluídos e esquecidos de todos, geralmente reagem de uma ou outra forma, pois têm pouco ou nada a perder.
Celebrando mais uma vez o Natal de Jesus Cristo, diante da conjuntura mundial de uma guerra, imprevisível em sua duração e extensão, contra o terrorismo, junto de outras situações conflituosas e bélicas, como entre Israel e os palestinos e as guerras na África, acrescentando-se as violências urbanas e sociais, enfim, diante de um mundo apreensivo e angustiado com tantos conflitos e agressões, convém meditar a mensagem orientadora daquele que foi chamado o príncipe da paz, o nascido na gruta de Belém. Seu nascimento foi saudado pelos anJos a cantar: "Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade (segundo outra tradução: aos homens por ele amados)" (Lc 2,14). Paz na terra aos homens de boa vontade! A boa vontade é exigência primordial para construir a paz. É preciso querer tenazmente construí-la.
A paz de que fala Cristo está, justamente, baseada na justiça, no direito, no respeito mútuo, na solidariedade, no acolhimento da alteridade, no amor e no perdão. Ele disse: "Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros" (Jo 13, 34-35). Mais adiante ele diz: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida pelos que ama" (Jo 15, 13). Ele chegou a dizer: "Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda" (Mt 5, 38-39). Só assim se rompe o círculo da violência. E disse mais: "Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mt 5, 43-44). Num outro momento, ele declara: "Vós sois todos irmãos" (Mt 23, 8).


Paz na terra aos homens de boa vontade! A boa vontade é exigência primordial para construir a paz


Mas Jesus não apenas ensinou, sobretudo praticou o que ensinou. Passou a vida fazendo o bem, diz o Evangelho. Solidarizou-se com os pobres, os excluídos e os aflitos de todo tipo. Curou os doentes, perdoou os pecadores e até mesmo seus algozes na cruz, acolheu a todos e, por fim, deu sua vida para a salvação do mundo, concretizando o que havia ensinado, ou seja, que ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida pelos que ama.
A Arquidiocese de São Paulo -e com ela as demais três dioceses que ocupam o território do município de São Paulo, a saber, as dioceses de Santo Amaro, Campo Limpo e São Miguel Paulista-, reavaliando sua prática do amor, que Jesus ensinou com a palavra e o exemplo, realizou durante este ano -e continuará no próximo ano- um seminário da caridade, no qual faz um levantamento de todas as suas obras sociais e caritativas, todas as suas iniciativas concretas de solidariedade para com os pobres, para avaliar se elas são suficientes, se adotam metodologia eficaz, se respondem aos apelos atuais dos pobres da cidade de São Paulo. Com a ajuda de diversas universidades e da prefeitura municipal, elabora os mapas da pobreza, em especial os mapas da exclusão/ inclusão social, da fome, do trabalho (formal e informal), da saúde, da moradia, da educação, da violência, da criança e adolescente, para verificar como a igreja está presente e como deveria estar atuando nessas áreas.
Queremos, assim, colaborar no desenvolvimento de uma cultura da solidariedade e da caridade, que deve estar na base da construção de uma paz duradoura.


Dom Cláudio Hummes, 67, é cardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).



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