São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Universidade pública democrática

SÉRGIO CARDOSO

Falta de professores, compressão salarial, instalações precárias, verbas de custeio insuficientes, total dependência das agências de fomento para os orçamentos de pesquisa. São conhecidas as misérias (nem sempre as virtudes) das universidades brasileiras. Tal situação pode ser associada às mazelas gerais do país, mas deve-se também à indiferença real de nossas políticas públicas em relação à instituição universidade -tida como ineficiente e burocrática e, assim, incapaz de produzir a ciência de que precisamos e as habilidades e novos perfis profissionais exigidos pelo mercado.
O sonho de nossas elites é o de vir a possuir um sistema de "grandes escolas" para formar seus quadros e o de erigir ilhas de excelência para produzir a ciência e tecnologia de que necessita; e, então, abandonar as nossas universidades à corvéia de uma função social indispensável: dar à massa dos subalternos a ilusão da mobilidade social por meio da escolarização universitária (além de retardar sua entrada num mercado de trabalho cada dia mais restrito).


Começou-se a assistir, em muitas áreas, a uma competição destrutiva por verbas e controle das agências públicas


Tais concepções, embutidas no reformismo da década passada, trouxeram um grande desgaste para as universidades. A política "modernizadora", fundada nas idéias de reconhecimento do mérito e incentivo à competição ("não há universidade sem busca da excelência", dizia o presidente aos reitores, "ela é sempre competitiva"), não promoveu nem o mérito nem a difusão de padrões de excelência, e nem mesmo motivou a desejada competição (aliás, uma idéia um tanto fora do lugar numa instituição que, por si mesma, destaca o ideal da cooperação dos saberes e da colaboração entre especialistas); apenas inoculou nelas a ideologia do mérito e da competição.
A imagem da excelência e do "alto nível" de uns poucos passou a fazer-se seguidamente às custas daquela do "baixo nível" dos outros, da sua desqualificação; começou-se a assistir, em muitas áreas, a uma competição destrutiva por verbas e controle das agências públicas; e prosperou o "produtivismo". Mais grave ainda: essa ideologia passou ao público a imagem da instituição ociosa e corporativa -não obstante as muitas evidências de seu empenho e trabalho, à prova das condições mais adversas (basta lembrar que as federais passam, de 1990 para cá, de 360 mil para 560 mil estudantes, enquanto o número de seus professores -ociosos!- cai de 48 mil para 42 mil).
Evidentemente as universidades estão fragilizadas pelos efeitos, externos e internos, dessa ideologia. E é preciso reconhecer que enfrentam algo como uma crise institucional de identidade. Por isso não basta pensar em dinheiro (aumentos de salários, contratações, fontes alternativas de financiamento). São necessárias medidas mais profundas: reverter o processo de sua desqualificação, repensar seu papel e produzir corajosamente as correções de rumo necessárias.
São essas as convicções presentes nas propostas recentemente apresentadas ao Fórum de Políticas Públicas (IEA/ USP). Os conceitos que as orientam são aqueles mesmos que se ouvem hoje nas universidades por toda parte: a exigência de seu compromisso social, autonomia institucional e funcionamento democrático. E suas linhas básicas são as seguintes:
1. Aprofundar o compromisso social das universidades, seja por meio da adequação do ensino e da pesquisa às necessidades sociais, culturais e regionais do país, seja pela implantação de políticas amplas e eficazes de extensão e cultura -para as quais se reservará uma porcentagem fixa de seus orçamentos.
2. Garantir sua autonomia institucional, sobretudo em dois níveis: autonomia de gestão, financeira e administrativa, ancorada por planos de atuação e orçamentos periódicos, democraticamente elaborados pelas próprias universidades (ao modo dos "orçamentos participativos"), e exigidos no seu cumprimento pelas agências do governo; autonomia no que se refere à pesquisa, assegurada pela destinação dos recursos às próprias universidades, institucionalmente consideradas (e não mais a indivíduos ou grupos) -por meio de um sistema de cotas e de um sistema de editais de concorrência para a realização de pesquisas, formações ou treinamentos propostos pelo governo.
3. Reafirmar a exigência da efetivação ampla do princípio nuclear da idéia de universidade: o da associação entre os processos da produção e da transmissão do saber (a vinculação entre docência e pesquisa) -sobretudo pela valorização efetiva do regime de dedicação integral à universidade.
Há também considerações sobre problemas antigos (vestibulares, exclusão social, regulação das instituições privadas), sobre os quais debates e inovações estão em curso sob a liderança corajosa da associação dos reitores, a Andifes. O que se pretende, enfim, é assinalar que, para além dos problemas emergenciais, muito mais está em causa; e lembrar que, se a mudança de rumos passa pelo interesse do governo, depende ainda mais da própria universidade.

Sérgio Cardoso, professor de ética e política do departamento de filosofia da USP, é um dos elaboradores do projeto de reforma universitária do Fórum de Políticas Públicas, ligado ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.


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