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São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A ofensiva conservadora dos EUA

GILBERTO DUPAS

O governo da grande potência hegemônica mundial, que detém sozinha um terço do PIB mundial e o poder inconteste para vencer guerras simultâneas em pelo menos dois cenários globais, foi tomado pelos conservadores. É, pois, fundamental entender de onde veio essa nova onda avassaladora.
Há dois ramos históricos que não podem ser confundidos: o religioso e o acadêmico. O integrismo protestante saído do Sul, uma espécie de cristianismo fundamentalista, é uma força ascendente do Partido Republicano, mas não pode ser confundida com o neoconservadorismo. Seus membros são moralistas, mas não têm um projeto de poder; seu principal representante no governo é o secretário da Justiça, John Ashcroft.


Habermas lembra que a sociedade mundial tornou-se complexa demais para ser controlada a partir de um único centro


Quanto à origem dos neoconservadores, recente ensaio de Alain Frachon e Daniel Vernet para o "Le Monde" lança importantes pistas. Alguns são intelectuais de boa cepa, vêm predominantemente da costa Leste e de Nova York; vários são judeus e ex-integrantes da esquerda. Alguns de seus principais representantes são: Paul Wolfowitz, o cérebro da Secretaria da Defesa; Francis Fukuyama, o inventor da metáfora do "fim da história"; e o ultraconservador Richard Perle. Alguns deles beberam nas águas de Leo Strauss, filósofo judeu-alemão, e seu discípulo Allan Bloom, professores eminentes nos anos 60 que pregavam o elogio à democracia militante e a exaltação quase religiosa aos valores americanos.
Esse grupo de pensamento, que se incrustou no governo Bush, foi sempre crítico do Estado de bem-estar social e da política de distensão com a antiga URSS. Contrapunha-se ao "equilíbrio pelo terror" e ao Tratado de Limitação Antimísseis, que acusava de causarem restrição ao desenvolvimento tecnológico dos EUA. Conseguiu convencer Reagan a endurecer com a URSS e iniciar o projeto Guerra nas Estrelas. E deu sempre apoio incondicional a Israel, garantido atualmente pela presença de Elliot Abrams no Conselho de Segurança Nacional. Suas teses contam com um espaço crescente na mídia, especialmente na Fox e no "Wall Street Journal", bem como em alguns importantes "think tanks", como o Hudson Institute e o Heritage Foundation.
Internacionalistas e militaristas ativistas, eles têm Kissinger como uma espécie de antimodelo e abominam seu pragmatismo flexível e sua Realpolitik. Ao contrário de Kissinger, considerado um cínico no poder, Wolfowitz expressa um temperamento revolucionário. Esse grupo é tomado por um otimismo messiânico e um voluntarismo político que acredita ser possível de mudar a natureza humana, as crenças e os regimes políticos. Esse novo pensamento conservador preenche parte do imenso vácuo intelectual que se seguiu ao fracasso dos regimes comunistas do Leste.
Seus membros sustentam a escalada de suas teses em três premissas fundamentais: a queda do muro de Berlim teria sido o resultado da agressividade de Reagan, que apressou o colapso econômico da URSS; o 11 de setembro provou que as democracias são muito vulneráveis; e a vitória no Iraque atestaria o poder e a eficácia do novo tipo de intervenção que eles defendem. São três argumentos de peso na mídia e na política.
Embora a superpotência se reserve o direito de agir unilateralmente quando e onde quiser, a ambição de poder global não é um fim em si mesmo para os neoconservadores. O objetivo final é a imposição dos "valores americanos" ao restante do mundo. E, para tanto, os EUA abrem mão da lógica das alianças e consensos, considerados contaminadores daqueles valores e retardadores de ações preventivas e punitivas. Em contrapartida, deixam em ruínas a ação reguladora em favor da governança mundial, obrigação de uma potência dita hegemônica. Os neoconservadores podem tomar os êxitos inquestionáveis no Afeganistão e no Iraque como exemplos de que uma nova ordem mundial é possível com o uso predominante da força. Mas Habermas lembra, com razão, que a sociedade mundial tornou-se complexa demais para ser controlada a partir de um único centro e com meios predominantemente militares.
A angústia dessa superpotência armada se expressará na tentativa sempre fracassada de fazer do seu entorno um objeto que ela possa controlar totalmente. Por isso, cada novo atentado em qualquer parte do mundo será encarado com sentimento de decepção e traição. Assim, as políticas externa e interna se reduzem a um sistema de segurança a qualquer preço. Alijando do jogo os países e as culturas diferentes, os EUA elevam brutalmente os custos de uma coordenação em termos puramente impositivos e hobbesianos. Essa atitude aprofunda a dúvida dos outros sobre se os valores que os EUA afirmam querer impor em seu benefício são igualmente bons para todos.
No entanto tudo indica que essa nova doutrina conservadora veio para durar pelo menos mais um mandato. Pousando no Abraham Lincoln, Bush faz o que só Teddy Roosevelt ousou, um século atrás, empunhando uma velha pistola: veste a farda militar e discursa como guerreiro vencedor. E consegue mais de 70% de apoio popular. Talvez só um mergulho profundo do seu país na recessão pudesse derrubá-lo nas eleições de 2004. Hipótese possível, dado o quadro atual, mas que faria um grande estrago na economia mundial, que continua a depender da vitalidade de sua potência hegemônica para tentar crescer.

Gilberto Dupas, 60, economista, é coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP e autor de "Hegemonia, Estado e Governabilidade", entre outras obras.


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