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São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Contrapartidas e contramarchas

CONSUELO DE CASTRO e RENATO BORGHI

Ao recuar no assunto das contrapartidas, o governo demonstrou grandeza e respeito para com a cultura. Porém, ainda que incontestáveis enquanto produtores da melhor arte nacional, os profissionais que encabeçaram o protesto não representam a totalidade dos trabalhadores do setor. A obra de arte, aqui e agora, ainda não constitui por si mesma uma contrapartida social, dados os ancestrais fossos que dividiram a sociedade brasileira.
Por esse motivo, desde que não implique limitações de conteúdo nem atente contra a liberdade de expressão tão duramente conquistada, a exigência é, sim, moralizadora e racional. Se os textos das contrapartidas publicados colocaram "em suspeição o governo em relação à liberdade de expressão", segundo o ministro Gushiken, em suspeição agora está o retorno ao estágio anterior: o acesso de poucos aos muitos recursos que todos geraram e a intangibilidade de um sistema fechado, em que, salvo relevantes exceções, predomina o aspecto personalista e mercadológico das escolhas.


Nossa sugestão é que todo o contingente de recursos de renúncia fiscal convirja para o Fundo Nacional de Cultura


Ressalvas devem ser feitas, como algumas iniciativas da BR Petrobras Distribuidora -na exigência de inserção de sessões gratuitas- e o Programa de Apoio ao Curta-Metragem, da Petrobras, empreendidas antes do governo Lula. Além e aquém da polêmica das contrapartidas, o que nos parece de fato preocupante é que no mesmo patamar de critérios e estratégias se equiparem produções culturais dos diversos gêneros e veículos, de Norte a Sul do país, ignorando tanto as especificidades setoriais quanto as históricas, geográficas e econômicas que conformaram cada região tal como é e se expressa.
Acreditamos que deva ser criada uma política distinta para o profissional e o amador, o urbano e o rural, o cinema e o teatro e cada forma de arte, artesanato e expressão popular-pois distintos são seus investimentos, destinatários sociais e realidades administrativas e orçamentárias. O cinema tem dimensões e agenda em escala industrial. O teatro é artesanato mesmo em sua mais urbana e requintada forma: dígitos e prioridades os diferenciam. Em todas as formas, custos são variáveis invariáveis, infensas à ética, ideologia e vocação. Mas o teatro simplesmente não poderá sobreviver sem apoio do governo, se não por aumento de dotação orçamentária, pela distribuição equânime dos recursos fiscais aos quais o governo renunciou.
Se o que se deseja é promover a inclusão social através da arte e da cultura, cabe tratar com isonomia todos os setores. Por outro lado, há que observar proporcionalidade a cada etapa do processo de produção. Se um patrocínio abrange da pré à pós-produção, de modo que o agente cultural não corra nenhum risco, a contrapartida deve ser inegociavelmente maior -tanto no que diz respeito ao aspecto educacional, quanto à ampliação do espectro social atingido. Nesse caso, é necessária a formação de uma rede interativa entre os ministérios da Cultura, da Educação e suas respectivas secretarias de Estados e municípios, de modo que não recaia sobre o agente cultural o encargo de operacionalizar e financiar o suporte para a inclusão e difusão do bem cultural.
Acreditamos que o equacionamento resida no Fundo Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura, o qual é preciso, antes de mais nada, tornar transparente. Nossa sugestão é que todo o contingente de recursos de renúncia fiscal convirja para o FNC, administrado e fiscalizado pelo governo federal, através de um colegiado de especialistas e intelectuais de capacidade universalmente aceita e técnicos das próprias empresas e do Minc. E que esse fundo se setorize em duas vertentes: a democratização horizontal e vertical do fazer cultural e seu usufruto e o fomento da produção profissional em todos os seus gêneros e contextos, especialmente a que se desenvolve no eixo Rio-São Paulo -onde se formou a imensa maioria dos atores, diretores, autores e grupos que criaram a linguagem cênica moderna, refletindo o Brasil para si mesmo e para o mundo.
Hoje, para ter acesso ao FNC, é preciso ser ONG. Nesse caso, como fica a situação do profissional que vive de seu ofício mas não tem acesso a patrocínios?
Outras perguntas não querem calar, e tentar respondê-las talvez seja a saída para o impasse. É razoável pedir ao produtor cultural que arque, sozinho, com a democratização ao acesso do bem produzido? É justo que as instituições bancárias, auferindo anualmente lucros desmesurados, beneficiem-se de renúncia fiscal para a formação de seus "institutos", cujas políticas culturais, excetuando um ou outro caso -como o Centro Cultural Banco do Brasil-, são traçadas no isolamento dos gabinetes e ao sabor das subjetividades e preferências pessoais? É lógico tentar equalizar, da noite para o dia -por programa de governo ou vontade política-, todas as contradições geográficas, históricas, econômicas e culturais do país?
Responder pragmaticamente a tais questões e normatizá-las é um processo que não antagoniza artistas e governo, mas os alia num mesmo e solidário intento: viabilizar para sempre e para todos a arte e a cultura no Brasil.
Este texto é produto de reflexão pessoal dos signatários e pretende ser apenas o ponto de partida para uma ampla discussão do setor, sobre assunto tão urgente e vital para a própria continuidade de nossas atividades.

Consuelo de Castro, 57, dramaturga e escritora, é autora de "Caminho de Volta", entre outras peças. Renato Borghi, ator e dramaturgo, é um dos fundadores do Teatro Oficina.


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