São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2004

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Tortura brasileira

SÃO PAULO - Puritanos fardados e sem freios, liberados pelo estímulo oficial ao uso de "métodos não-convencionais" para obter confissões, comprazem-se com crueldades masoquistas e escatológicas na prisão que simbolizava os horrores do regime de Saddam Hussein. A alegria e a ausência de culpa é tamanha que tiram fotos para guardar ou trocar com seus pares. Americanos sinceros chocam-se e tratam a tortura como "unAmerican" -algo essencialmente contrário ao espírito dos EUA.
Clóvis Rossi, o titular desta coluna, já lembrou que essa é uma visão relativamente ingênua, uma vez que governos americanos foram useiros e vezeiros em apoiar a prática de tortura em outros países. Em artigo publicado pela Folha no último domingo, Frei Betto mostrava sua indignação com as cenas de Abu Ghraib e dizia que "quem passou pelos cárceres da ditadura brasileira sabe que a Escola das Américas formou torturadores brasileiros e que a tortura sempre foi admitida pela CIA".
Porém, em visita à China, Lula, de quem Frei Betto é assessor especial, tergiversa na questão dos direitos humanos. É certo que o Estado brasileiro assumiu nos últimos anos uma posição institucional clara de defesa desses direitos, mas isso não serve para apagar o fato de que a tortura continua sendo aplicada em porões policiais por esse país afora.
Militantes do PT conhecem os males de um regime de arbítrio, embora a democracia não seja um valor cultivado pela esquerda. Lula deveria ter sido mais explícito na visita ao shopping asiático. E os anfitriões poderiam lembrá-lo do assassinato de um compatriota sob guarda da polícia brasileira, cujo crime seria sair do Brasil portando, sem declarar, uma quantia acima da permitida. Por isso mesmo seria proveitoso que o tema merecesse, também aqui, mais atenção do presidente e de seus assessores - pois a tortura não é repugnante só quando tem motivação política, é praticada por americanos ou atinge jovens radicais de classe média.


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