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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

O que querem as crianças

Diante do sucesso espantoso da série "Harry Potter", lida nos livros, vista nos filmes, consumida com avidez por milhões de crianças e muitos de seus pais, somos levados a perguntar que corda tão profunda, a ponto de ser tão generalizada, esse mito soube tocar. Temos a oportunidade de surpreendê-lo ainda em formação e queremos conhecer seus segredos.
Vamos deixar de lado a febre de consumo que o envolve, bem como seu mérito literário ou pedagógico. A proeza da autora, a escocesa J. K. Rowling, foi além: estabelecer uma ponte com as crianças, de quem os adultos parecem cada vez mais alheados, projetada na forma narrativa escrita, a linguagem a que os jovens se mostram cada vez mais refratários.
A saga do protagonista, um menino feiticeiro, obedece aos cânones tradicionais da literatura para crianças. Harry Potter é órfão, circunstância que ecoa nas angústias de toda criança e garante latitude de movimentos ao herói. É dotado de superpoderes, fantasia que mal disfarça o desejo de prevalecer sobre os adultos como estes prevalecem sobre as crianças.
Ele tem sua turma, alinhada ao campo do bem na luta habitual contra as trevas. Outro aspecto imprescindível nas aventuras para crianças -a impunidade física, que permite às figuras de desenho animado se estropiarem para aparecer lépidas no momento seguinte- está mais do que autorizado, aqui, dadas as aptidões mágicas do pessoal.
São estratagemas universais, utilizados também pelo maior expoente local, Monteiro Lobato. Pedrinho e Narizinho não são órfãos, mas seus pais foram varridos do mapa; os parentescos devem ser oblíquos para que a fantasia possa escapar à autoridade sem confrontá-la. Superpoderes e impunidade física são propiciados pelo pó de pirlimpimpim.
Se nem a forma nem a estrutura são novas em "Harry Potter", então o que distingue esses livros além de combinarem à perfeição ingredientes já conhecidos? Uma nostalgia, um desejo de reencantar o mundo, agora que ele se rendeu de uma vez ao cálculo e à mercadoria? Mas isso valeria para qualquer clássico da literatura infantil, para o próprio Lobato.
Conforme a série avança -mais um volume foi lançado há poucos dias- parece que a demarcação entre bem e mal, antes tão nítida, é perturbada por ambivalências ocultas na incógnita sobre a filiação de Harry Potter. É de supor que o reconhecimento das dificuldades para distinguir entre bem e mal expresse a conversão do herói, enfim, em pessoa adulta.
Mas, de novo, é algo assim o que ocorre em "Guerra nas Estrelas" com a problemática filiação do herói Luke Skywalker ao vilão Darth Vader (símile de Lord Voldemort em "Harry Potter"). Talvez exista um elemento fixo na infância, imune ao tempo, que se traduz numa literatura tanto mais "clássica" quanto mais virtuosística for a sua reiteração.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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