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OTAVIO FRIAS FILHO
O que querem as crianças
Diante do sucesso espantoso da
série "Harry Potter", lida nos livros, vista nos filmes, consumida com
avidez por milhões de crianças e muitos de seus pais, somos levados a perguntar que corda tão profunda, a ponto de ser tão generalizada, esse mito
soube tocar. Temos a oportunidade de
surpreendê-lo ainda em formação e
queremos conhecer seus segredos.
Vamos deixar de lado a febre de consumo que o envolve, bem como seu
mérito literário ou pedagógico. A
proeza da autora, a escocesa J. K. Rowling, foi além: estabelecer uma ponte
com as crianças, de quem os adultos
parecem cada vez mais alheados, projetada na forma narrativa escrita, a linguagem a que os jovens se mostram
cada vez mais refratários.
A saga do protagonista, um menino
feiticeiro, obedece aos cânones tradicionais da literatura para crianças.
Harry Potter é órfão, circunstância
que ecoa nas angústias de toda criança
e garante latitude de movimentos ao
herói. É dotado de superpoderes, fantasia que mal disfarça o desejo de prevalecer sobre os adultos como estes
prevalecem sobre as crianças.
Ele tem sua turma, alinhada ao campo do bem na luta habitual contra as
trevas. Outro aspecto imprescindível
nas aventuras para crianças -a impunidade física, que permite às figuras
de desenho animado se estropiarem
para aparecer lépidas no momento seguinte- está mais do que autorizado,
aqui, dadas as aptidões mágicas do
pessoal.
São estratagemas universais, utilizados também pelo maior expoente local, Monteiro Lobato. Pedrinho e Narizinho não são órfãos, mas seus pais
foram varridos do mapa; os parentescos devem ser oblíquos para que a fantasia possa escapar à autoridade sem
confrontá-la. Superpoderes e impunidade física são propiciados pelo pó de
pirlimpimpim.
Se nem a forma nem a estrutura são
novas em "Harry Potter", então o que
distingue esses livros além de combinarem à perfeição ingredientes já conhecidos? Uma nostalgia, um desejo
de reencantar o mundo, agora que ele
se rendeu de uma vez ao cálculo e à
mercadoria? Mas isso valeria para
qualquer clássico da literatura infantil,
para o próprio Lobato.
Conforme a série avança -mais um
volume foi lançado há poucos dias-
parece que a demarcação entre bem e
mal, antes tão nítida, é perturbada por
ambivalências ocultas na incógnita
sobre a filiação de Harry Potter. É de
supor que o reconhecimento das dificuldades para distinguir entre bem e
mal expresse a conversão do herói, enfim, em pessoa adulta.
Mas, de novo, é algo assim o que
ocorre em "Guerra nas Estrelas" com
a problemática filiação do herói Luke
Skywalker ao vilão Darth Vader (símile de Lord Voldemort em "Harry Potter"). Talvez exista um elemento fixo
na infância, imune ao tempo, que se
traduz numa literatura tanto mais
"clássica" quanto mais virtuosística
for a sua reiteração.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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