|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Uma história de ideologia
JOSÉ SARNEY
Alexandrino Rocha, um dos mais
brilhantes jornalistas do Nordeste, era
o secretário de Imprensa do governador Miguel Arraes na Revolução de
64. Foi preso e encontrou-se, no salão
dos interrogatórios, com um tipo popular no Recife, que andava com um
capote pesado, absolutamente inadequado para o clima da região, barba
grande, entre profeta e andarilho, que
acompanhava todos os movimentos
da esquerda pernambucana e gostava,
para gozação da cidade, de dar conselhos ao governador.
Deram-lhe o apelido de Malenkov, o
efêmero sucessor de Stálin. Certa vez,
encontrou o dr. Arraes num comício,
aproximou-se dele e denunciou:
"Dr. Arraes, isso não é possível, o
delegado de polícia de Caruaru não
sabe nada de marxismo. É preciso zelar pela doutrina".
Alexandrino cruza com Malenkov
na prisão. O inquisidor, um capitão
revolucionário, ao olhá-lo, foi direto:
"Seu comunista miserável, enfim o
pegamos!". O Malenkov olhou de lado, sacudiu a cabeça e retrucou: "Capitão, não venha me furar. Eu sou
kardecista, da linha 2, porque tinha
dois Allan Kardecs. Comunista, jamais! Sou espiritualista".
Alexandrino Rocha quis rir e o capitão, ríspido, cortou: "Você é outro,
dos piores".
Agora, leio que o nosso querido e
legendário Arraes cobrou uma linha
ideológica do Ciro Gomes, a mesma
firmeza que o Malenkov dizia que ele
não tinha com o delegado de Caruaru.
Não é socialista, não pode entrar no
PSB! A lei determina que o filiado
concorde com o programa do partido.
Se a moda pega, vamos ter um interrogatório como aquele que testemunhou o Alexandrino Rocha. Basta
usar a mesma fórmula nas filiações
partidárias. No PFL, o ritual deve ser:
"És neoliberal?" No PSDB: "És social-democrata? De que ala? Covas,
FHC ou governista?" No PMDB: "És
de centro esquerda, direita ou centro
centro?" E no PT: "És socialista? Marxista-leninista? Articulação? Trotskista? CUT ou MST?" E no Prona?: "És
pronista?" E assim por diante.
O diabo é a dificuldade de saber nos
tempos atuais o que é o socialismo. As
ideologias estão num caldeirão de
mudanças e transformações, para desaparecerem pelo fogo. Jean François
Revel escreveu um livro sobre o conceito moderno de socialismo. Diz ele
que agora tantas são as nuances, as
vestimentas, os disfarces, que socialista é apenas aquele que se preocupa
com o social.
Bobbio, por outro lado, depois de
estudar tanto as doutrinas políticas,
afirma que não existe social-democracia. Thomas Morus, quando escreveu
o seu famoso livro "Utopia", descrevendo uma sociedade imaginária, sem
Estado, com produção coletiva, felicidade de todos sem a exploração do
homem pelo homem, foi o primeiro
socialista e diz-se que foi o influenciador de todo o modelo ideal do comunismo.
Com a tradição brasileira de partidos não-ideológicos e regionais vai ser
difícil reimplantar a rigidez de conceitos e dogmas programáticos. A situação partidária do Brasil está exatamente como dizia o meu histórico adversário Vitorino Freire: "Hora de
vaca não conhecer bezerro".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|