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OTAVIO FRIAS FILHO
Memória do "impeachment"
O reconhecimento de que a
política contemporânea se dá sobretudo em termos de imagens é a
versão amplificada, tornada profissional e técnica, do tradicional dito da
política mineira de que "o que vale é a
versão". Nesse sentido, o fato político
Collor, de quem se comemoram dez
anos de "impeachment" no domingo
próximo, comporta ao menos três diferentes versões.
A primeira delas, na qual a maioria
das pessoas quis acreditar desde a
campanha até meados de seu breve e
atormentado governo, é a do Collor
oficial. Ele encarnava a modernidade,
a eficiência, a erradicação da corrupção, a renovação do quadro político-institucional, a pressa de agir e a avalanche que o consagrou como primeiro presidente eleito desde seu precursor, Jânio.
A sociedade quedou hipnotizada
ante tamanho salto de profissionalismo. O traço mais notável do governo
Collor foi a sua capacidade de preencher todos os espaços simbólicos e de
embaralhar, sempre a favor de sua
personalidade de demiurgo, inovação
e conservadorismo. Ele foi o primeiro
a praticar, entre nós, uma política essencialmente de imagem.
A segunda versão é a do Collor do
"impeachment". Tão propenso a se
deixar embalar por redentores da pátria quanto lamentoso quando verificou que se tratava de mais uma ilusão,
o eleitorado caiu em rancoroso estupor ao constatar que seu governo,
além de inepto, era formado por círculos de corrupção jamais vistos que
convergiam diretamente para o chefe.
Tendo à frente um jogador que dobrava a aposta a cada lance de ousadia,
a claque de Collor era formada por
aventureiros de província modernizados a golpes de capitalismo à brasileira: ia, por assim dizer, com sede demais ao pote. Num movimento comparável ao das Diretas-Já, quase dez
anos antes, ele foi deposto dentro dos
marcos da democracia, algo até então
inédito.
A terceira versão seria sociológica.
Collor representou o início de mais
uma "modernização conservadora"
do país, ajustando a "agenda" local à
internacional. Foi o "cavalo", como se
diz no candomblé, dos orixás do liberalismo: privatizações, liberdade comercial, abertura econômica para o
exterior, desregulamentação em geral
-tudo isso começou no Brasil com
ele.
Seu governo quebrou o modelo autonomista que prevalecia desde a era
getuliana e se acentuara durante o regime militar.Enfrentou resistências
mais encarniçadas, que Fernando
Henrique por isso mesmo já pegaria
mais brandas, das corporações sindicais e empresariais. Tentou equilibrar-se sobre os grupos organizados, pairando conforme o figurino cesarista.
O temperamento do presidente encarregou-se de colocá-lo em guerra
com as "elites" (termo que ele introduziu no vocabulário corrente), ou seja, as entidades organizadas da sociedade civil, para não mencionar sua
atitude imperial diante do Judiciário,
do Congresso e até mesmo dos militares, cujo poder político, diga-se de
passagem, ele contribuiu para reduzir.
Sua contribuição maior terá sido negativa, ou seja, pelo antiexemplo. Sua
deposição foi mostra de vigor das instituições democráticas criadas na redemocratização, seu primeiro teste de
verdade. Ela deu origem ao longo consulado do presidente FHC, cujas qualidades se definem "em negativo" às
de Collor: estabilidade, equilíbrio,
"processo".
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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