São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Memória do "impeachment"

O reconhecimento de que a política contemporânea se dá sobretudo em termos de imagens é a versão amplificada, tornada profissional e técnica, do tradicional dito da política mineira de que "o que vale é a versão". Nesse sentido, o fato político Collor, de quem se comemoram dez anos de "impeachment" no domingo próximo, comporta ao menos três diferentes versões.
A primeira delas, na qual a maioria das pessoas quis acreditar desde a campanha até meados de seu breve e atormentado governo, é a do Collor oficial. Ele encarnava a modernidade, a eficiência, a erradicação da corrupção, a renovação do quadro político-institucional, a pressa de agir e a avalanche que o consagrou como primeiro presidente eleito desde seu precursor, Jânio.
A sociedade quedou hipnotizada ante tamanho salto de profissionalismo. O traço mais notável do governo Collor foi a sua capacidade de preencher todos os espaços simbólicos e de embaralhar, sempre a favor de sua personalidade de demiurgo, inovação e conservadorismo. Ele foi o primeiro a praticar, entre nós, uma política essencialmente de imagem.
A segunda versão é a do Collor do "impeachment". Tão propenso a se deixar embalar por redentores da pátria quanto lamentoso quando verificou que se tratava de mais uma ilusão, o eleitorado caiu em rancoroso estupor ao constatar que seu governo, além de inepto, era formado por círculos de corrupção jamais vistos que convergiam diretamente para o chefe.
Tendo à frente um jogador que dobrava a aposta a cada lance de ousadia, a claque de Collor era formada por aventureiros de província modernizados a golpes de capitalismo à brasileira: ia, por assim dizer, com sede demais ao pote. Num movimento comparável ao das Diretas-Já, quase dez anos antes, ele foi deposto dentro dos marcos da democracia, algo até então inédito.
A terceira versão seria sociológica. Collor representou o início de mais uma "modernização conservadora" do país, ajustando a "agenda" local à internacional. Foi o "cavalo", como se diz no candomblé, dos orixás do liberalismo: privatizações, liberdade comercial, abertura econômica para o exterior, desregulamentação em geral -tudo isso começou no Brasil com ele.
Seu governo quebrou o modelo autonomista que prevalecia desde a era getuliana e se acentuara durante o regime militar.Enfrentou resistências mais encarniçadas, que Fernando Henrique por isso mesmo já pegaria mais brandas, das corporações sindicais e empresariais. Tentou equilibrar-se sobre os grupos organizados, pairando conforme o figurino cesarista.
O temperamento do presidente encarregou-se de colocá-lo em guerra com as "elites" (termo que ele introduziu no vocabulário corrente), ou seja, as entidades organizadas da sociedade civil, para não mencionar sua atitude imperial diante do Judiciário, do Congresso e até mesmo dos militares, cujo poder político, diga-se de passagem, ele contribuiu para reduzir.
Sua contribuição maior terá sido negativa, ou seja, pelo antiexemplo. Sua deposição foi mostra de vigor das instituições democráticas criadas na redemocratização, seu primeiro teste de verdade. Ela deu origem ao longo consulado do presidente FHC, cujas qualidades se definem "em negativo" às de Collor: estabilidade, equilíbrio, "processo".


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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