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CARLOS HEITOR CONY
As grandes palavras
RIO DE JANEIRO - Foi difícil descobrir aquele rosto. Estava escondido
por outros rostos, muita gente entre
os dois, a cerimônia era solene e longa, nem ele, nem ela podiam se mexer, sair do lugar. Mas, de repente,
uma certeza: "Deve ser ela! Só pode
ser ela!".
E se não fosse? Faria sentido a insistência com que ele a olhava, desprezando tudo em redor, o ambiente
austero, a austeridade de tudo, ali só
importavam as coisas nobres, os vôos
mais altos da inteligência humana, e
ele perdido no lamaçal do desejo, é
ela!, é ela!, só pode ser ela, aqueles
olhos escuros, aquele cabelo negro,
aquele rosto pálido que ele, pela primeira vez, encarava, cruamente, sem
dar bola para tudo o mais.
Piorando a coisa, aumentando a
tensão, volta e meia ela também
olhava para ele, um olhar amigo e
leal, talvez lisonjeado, talvez ofendido pela obsessão, pela gula com que
era olhada.
Não havia passado entre os dois.
Talvez curiosidade, encontros ligeiros, superficiais, amigos comuns, profissões mais ou menos comuns, nunca tiveram tempo para conversas,
nunca ficaram sozinhos, podendo dizer ou engolir as Grandes Palavras
que talvez nunca fossem ditas.
Daí que ele aproveitou o silêncio
aberto entre os dois, o silêncio austero
da cerimônia austera, em que somente um orador falava, e todos ouviam.
Olhou-a como nunca a olhara antes, como nunca olhara ninguém,
que o mundo se danasse, que todos se
danassem, a começar pela cerimônia
que o entediava.
Parece que ela percebeu. Mas não
podia fazer nada, houve um momento em que aceitou aquele olhar e
também olhou para ele. Ao contrário
de Adão e Eva, que se descobriram
nus após a maçã, eles não se descobriram, apenas se olharam, um pouco
surpreendidos, quem diria, tudo pode acontecer. E como seria bom se
realmente acontecesse. (trecho de um
romance em preparo.)
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