São Paulo, terça-feira, 26 de outubro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Demandas corporativas na modernidade
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Idéias como as do sociólogo alemão Ulrich Beck, sobre a sociedade de risco, ajudam a pensar criticamente as demandas sociais no Brasil de hoje. Elas são muito mais expressões dessa dramática mudança do que resultado de uma agudização das contradições sociais e de uma radicalização dos opostos. Beck se remete à obsolescência de categorias nas ciências sociais e também no pensamento de esquerda, como a de classes sociais. As classes sociais como base de demandas sociais e políticas vão sendo ocultadas por essa penumbra de incertezas. Já não são as classes sociais as protagonistas dos conflitos e das demandas sociais e políticas. Pergunto, então: a esquerda ainda é de esquerda? Essas demandas são cada vez mais corporativas, como a do regime de cotas para negros nas universidades e a da partilha corporativa da terra na reforma agrária. Sem contar a fragmentação das agências de mediação dos conflitos pela terra: 71 organizações contadas até agora. Iguais disputas temos visto nas cidades: grupos que ocupam conjuntos habitacionais e reivindicam direitos de precedência em relação aos verdadeiros adquirentes, não raro na fila há tempo. São demandas por reformas de fato conservadoras, ainda que socialmente transformadoras. Facilmente nos esquecemos de que há um potencial de mudança na referência idealizada do passado. O corporativismo autodefensivo das demandas sociais constitui expressão nítida da crise do cenário próprio de estabilidade social relativa que já não há, de certezas que já não são possíveis. A clientela da reforma agrária cada vez mais procede dos setores residuais e marginalizados do processo de desenvolvimento instável que caracteriza este momento histórico. Um crescente número de pessoas que engrossam as filas dos movimentos de sem-terra vem justamente de setores rurais e urbanos marcados por um destino de incerteza e de falta de perspectiva e de futuro. São pessoas para as quais o pedaço de terra constitui apenas uma segurança adicional, uma tentativa de ajuste a uma pluralidade de possibilidades de ocupação econômica. Não se trata, propriamente, do primado político da terra de trabalho. O negócio e o negociante estão triunfando no que pretende negá-los. Nas incertezas do mercado de trabalho, o recuo principal é para o que a própria tradição conservadora elegeu como a referência protetiva na sociedade da incerteza, que é a propriedade imobiliária, em particular a da terra. No mesmo sentido, a adoção do regime de cotas na universidade constitui tentativa de certeza de um neotradicionalismo de raça e de marca numa sociedade de incertezas. São reivindicações feitas em nome de uma justa igualdade de oportunidades, mas que de fato proclamam uma igualdade condicionada, no fim das contas, por direitos de nascimento ou, no mesmo sentido, pelo reparo tardio de injustiças estruturais e históricas. São movimentos da elite dos pobres, se pensarmos nos calados caipiras e sertanejos, descendentes das populações indígenas escravizadas até o século 18, os caipiras e sertanejos não raro reduzidos à pobreza e à servidão até hoje. Para essas vítimas da história não há terra nem cotas. Estamos a caminho da reestamentalização da sociedade contemporânea, como sugeriu Henri Lefebvre; um restabelecimento de critérios de qualidade social que, na desigualdade que lhes é inerente, assegura aos seus beneficiários a parte que lhes toca neste latifúndio. Mas, certamente, não a civilizada igualdade social e jurídica do imaginário moderno. As lutas corporativas não emancipam quem luta nem a sociedade iníqua em que a luta se desenrola. José de Souza Martins, 66, professor titular aposentado de sociologia da USP, é autor de, entre outras obras, "O Sujeito Oculto" (UFRGS). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Ives Gandra da Silva Martins: Os provedores na internet e o ICMS Índice |
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