São Paulo, sexta-feira, 26 de outubro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Senado Federal e STF: queda e ascensão

PAULO BONAVIDES

Nunca nos regimes imperial e republicano o corpo representativo desceu tanto em grau de legitimidade quanto na atual conjuntura

A CRISE do Senado faz parte da deterioração do presidencialismo no Brasil enquanto forma de governo. Perpetua uma crise constituinte de quase dois séculos de longevidade. Tão profunda que derrubou um império e fez soçobrar várias Repúblicas desde 1889 até a instalação da nova República, em 1988.
Dentre os alvitres para sair da crise e tirar do descrédito a legislatura, vilipendiada pelo caso Renan Calheiros -escândalo sem precedente nos anais do Congresso Nacional-, houve um, todavia, que inculcou a desnecessidade do Senado Federal.
Aliás, mesmo as Cartas outorgadas, inclusive a dos generais da ditadura, mantiveram, embora de fachada, um Senado. A única exceção foi a de 1937 -uma espécie de ato institucional intitulado de Constituição. Em substituição ao Senado, a Carta espúria instituía um Conselho Federal, composto de representantes dos Estados, com dez membros nomeados pelo presidente da República.
A nosso parecer, extinguir a instituição não resolve a presente crise. Pode, ao revés, significar uma tragédia para o regime, por abalar o edifício da Federação, por ferir princípios constitucionais de índole republicana, por enfraquecer o sistema federativo, agravar a crise da governabilidade democrática, transgredir a composição representativa do sistema.
A Câmara Alta tem lugar de honra na tradição política do Império e da República. Foi tribuna em que Rui Barbosa lecionou a liberdade e pregou o respeito à Constituição com a eloqüência de uma oratória poderosa, persuasiva e imortal.
Suprimir aquela Casa, passando sobre o cadáver da Constituição, vem unicamente em reforço de um presidencialismo que a história condenou e a nação da cidadania consciente não absolveu nem consagrou.
Desferido tamanho golpe de Estado, a partir daí, que resistência poderia opor ao Executivo voraz um Legislativo mutilado, com partidos desfalcados de programas e expostos às fragilidades da servidão clientelista, bem como às seduções corruptoras provenientes da máquina governante?
Mais fácil e de muito menor custo ao presidencialismo é o suborno político de uma só Câmara do que de duas Casas parlamentares. Mediante pressões irresistíveis, o poder dos presidentes não raro fabrica maiorias legislativas que sustentam políticas vexatórias lesivas à nação e à sociedade.
Nunca nos regimes imperial e republicano o corpo representativo desceu tanto em grau de legitimidade quanto na atual conjuntura.
A pior, talvez, de toda a nossa história constitucional.
Mas nem por isso vamos banir da cena política uma Casa de passado digno, por que, se assim procedermos, faremos o Brasil retrogradar, em parte, a 1937, à ditadura do Estado Novo, a qual, durante oito anos, até sua queda, governou o país sem Câmara dos Deputados e sem Senado.
A lacuna se preenchia então por decretos-leis do ditador, lavrados nas antecâmaras do Catete, isto é, nos escaninhos do palácio presidencial, cujas portas sempre estiveram cerradas ao exercício da soberania popular.
Se porventura colocarmos na balança da legitimidade as duas instituições que ora atraem as atenções da cidadania, a saber, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, verificaremos o seguinte: enquanto o primeiro decai na confiança do povo, em conseqüência de escândalos que envolveram seu presidente, o segundo cresce com a renovação de quadros e as decisões do mensalão e da fidelidade partidária.
Acerca deste derradeiro instituto, a corte maior, pelo voto majoritário dos ministros que a compõem, parece haver firmado, em definitivo, a jurisprudência da supremacia concreta e normativa dos princípios.
Aí se consubstancia o avanço mais considerável, mais positivo, mais importante da época constitucional que o país ora vive e atravessa.
Ao manter a decisão histórica do Tribunal Superior Eleitoral sobre a fidelidade partidária, aquele órgão da magistratura, ao que tudo indica, inaugurou na esfera constitucional uma nova era em que a supremacia da Constituição é, em primeiro lugar, a supremacia dos princípios.
De princípios se compõe toda a medula do sistema. Caso não se arrede pois dessa posição, o Supremo doravante caminha na direção certa. O futuro da Constituição e da democracia reside em concretizar princípios, em reconhecer-lhe a força imperativa, em formar a convicção incontrastável e sólida de que eles legitimam os Poderes constitucionais. E o fazem já no âmbito teórico, já no domínio da prática, em que o que mais importa é estabelecer a república da liberdade e dos direitos fundamentais.
Portanto, aquela que sempre esteve nas aspirações do povo brasileiro desde as nascentes da nacionalidade.


PAULO BONAVIDES, 82, doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa (Portugal), é professor emérito da Universidade Federal do Ceará, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais" e membro do comitê de que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional. É autor, entre outras obras, de "História Constitucional do Brasil".

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