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TENDÊNCIAS/DEBATES
Senado Federal e STF: queda e ascensão
PAULO BONAVIDES
Nunca nos regimes imperial e republicano o corpo representativo desceu tanto em grau de legitimidade quanto na atual conjuntura
A CRISE do Senado faz parte da
deterioração do presidencialismo no Brasil enquanto forma de governo. Perpetua uma crise
constituinte de quase dois séculos de
longevidade. Tão profunda que derrubou um império e fez soçobrar várias Repúblicas desde 1889 até a instalação da nova República, em 1988.
Dentre os alvitres para sair da crise
e tirar do descrédito a legislatura, vilipendiada pelo caso Renan Calheiros
-escândalo sem precedente nos
anais do Congresso Nacional-, houve um, todavia, que inculcou a desnecessidade do Senado Federal.
Aliás, mesmo as Cartas outorgadas,
inclusive a dos generais da ditadura,
mantiveram, embora de fachada, um
Senado. A única exceção foi a de 1937
-uma espécie de ato institucional intitulado de Constituição. Em substituição ao Senado, a Carta espúria instituía um Conselho Federal, composto de representantes dos Estados,
com dez membros nomeados pelo
presidente da República.
A nosso parecer, extinguir a instituição não resolve a presente crise.
Pode, ao revés, significar uma tragédia para o regime, por abalar o edifício
da Federação, por ferir princípios
constitucionais de índole republicana, por enfraquecer o sistema federativo, agravar a crise da governabilidade democrática, transgredir a composição representativa do sistema.
A Câmara Alta tem lugar de honra
na tradição política do Império e da
República. Foi tribuna em que Rui
Barbosa lecionou a liberdade e pregou o respeito à Constituição com a
eloqüência de uma oratória poderosa,
persuasiva e imortal.
Suprimir aquela Casa, passando sobre o cadáver da Constituição, vem
unicamente em reforço de um presidencialismo que a história condenou
e a nação da cidadania consciente não
absolveu nem consagrou.
Desferido tamanho golpe de Estado, a partir daí, que resistência poderia opor ao Executivo voraz um Legislativo mutilado, com partidos desfalcados de programas e expostos às fragilidades da servidão clientelista, bem
como às seduções corruptoras provenientes da máquina governante?
Mais fácil e de muito menor custo
ao presidencialismo é o suborno político de uma só Câmara do que de duas
Casas parlamentares. Mediante pressões irresistíveis, o poder dos presidentes não raro fabrica maiorias legislativas que sustentam políticas vexatórias lesivas à nação e à sociedade.
Nunca nos regimes imperial e republicano o corpo representativo
desceu tanto em grau de legitimidade
quanto na atual conjuntura.
A pior, talvez, de toda a nossa história constitucional.
Mas nem por isso vamos banir da
cena política uma Casa de passado
digno, por que, se assim procedermos, faremos o Brasil retrogradar, em
parte, a 1937, à ditadura do Estado
Novo, a qual, durante oito anos, até
sua queda, governou o país sem Câmara dos Deputados e sem Senado.
A lacuna se preenchia então por decretos-leis do ditador, lavrados nas
antecâmaras do Catete, isto é, nos escaninhos do palácio presidencial, cujas portas sempre estiveram cerradas
ao exercício da soberania popular.
Se porventura colocarmos na balança da legitimidade as duas instituições que ora atraem as atenções da cidadania, a saber, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, verificaremos o
seguinte: enquanto o primeiro decai
na confiança do povo, em conseqüência de escândalos que envolveram seu
presidente, o segundo cresce com a
renovação de quadros e as decisões do
mensalão e da fidelidade partidária.
Acerca deste derradeiro instituto, a
corte maior, pelo voto majoritário dos
ministros que a compõem, parece haver firmado, em definitivo, a jurisprudência da supremacia concreta e normativa dos princípios.
Aí se consubstancia o avanço mais
considerável, mais positivo, mais importante da época constitucional que
o país ora vive e atravessa.
Ao manter a decisão histórica do
Tribunal Superior Eleitoral sobre a fidelidade partidária, aquele órgão da
magistratura, ao que tudo indica,
inaugurou na esfera constitucional
uma nova era em que a supremacia da
Constituição é, em primeiro lugar, a
supremacia dos princípios.
De princípios se compõe toda a medula do sistema.
Caso não se arrede pois dessa posição, o Supremo doravante caminha
na direção certa. O futuro da Constituição e da democracia reside em
concretizar princípios, em reconhecer-lhe a força imperativa, em formar
a convicção incontrastável e sólida de
que eles legitimam os Poderes constitucionais. E o fazem já no âmbito teórico, já no domínio da prática, em que
o que mais importa é estabelecer a república da liberdade e dos direitos
fundamentais.
Portanto, aquela que sempre esteve
nas aspirações do povo brasileiro desde as nascentes da nacionalidade.
PAULO BONAVIDES, 82, doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa (Portugal), é professor emérito da Universidade Federal do Ceará, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais" e
membro do comitê de que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional. É autor, entre outras obras, de "História Constitucional do Brasil".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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