|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Nunca mais!
RICARDO ANTUNES
Nunca mais na história deste país o pícaro e o trágico deverão apresentar-se em nome
da esquerda
NUNCA ANTES na história deste país se elegera um presidente de origem operária e nunca
antes tantas forças de esquerda tinham conseguido chegar ao Palácio
do Planalto.
Nunca antes na história deste país
um candidato de origem popular participara de cinco eleições presidenciais, colhera três derrotas consecutivas e duas vitórias seguidas, contabilizando tantos milhões de votos.
Nunca antes na história deste país
um partido de esquerda -o Partido
dos Trabalhadores- tivera tanta
chance e legitimidade para começar a
desmontar as sólidas engrenagens da
tragédia brasileira e nunca defendera
tanto as mudanças sociais e políticas
dotadas de valores éticos e morais que
travassem e obstassem a corrupção
do Estado patrimonial brasileiro.
Nunca antes na história deste país
um presidente da República fora tanto a imagem e a semelhança do povo
brasileiro.
Nunca antes na história deste país
um partido de esquerda (no governo)
implementara uma política tão assistencialista -que nem sequer arranhou o verniz da nossa barbárie- e
tão rapidamente se convertera em
partido da ordem.
Nunca antes na história deste país
uma liderança política de origem operária e sindical sofrera um transformismo tão acentuado, que lhe desfigurou a própria alma.
Nunca antes na história deste país o
dito virou não dito. A antiga e bravia
oposição virara tão serviçal situação e
fora tão pateticamente tragada pela
corrupção. O velho e moderado PCB
saiu muito mais íntegro na longa história do chamado Partidão.
Nunca antes na história deste país
um governo e o comando de seu partido -que nasceu e se definia como
sendo de esquerda- tinham arquitetado um projeto de corrupção do tamanho do mensalão. Até então, esse
era um atributo próprio das direitas.
Nunca antes na história deste país
um presidente tão personalista e centralizador, tendo seu entorno mergulhado num lamaçal -ou pântano-,
alegara tão singelo desconhecimento
do que se passava na ante-sala de seu
gabinete, mesmo sabendo que ele
sempre tivera o controle pleno de tudo o que se decidia na cúpula de seu
partido.
Nunca antes na história deste país
um governo de "esquerda" fora tão
generoso com os lucros dos bancos e
dos grandes capitais, tão camarada
com os usineiros e por demais cordial
com o agronegócios.
Nunca antes na história deste país
um governo que se originara de um
partido de esquerda e de oposição erigira um modelo econômico reiteradamente elogiado pelo FMI e fora tão
bom seguidor das políticas gestadas
nos estranhos laboratórios do Banco
Mundial.
Nunca antes na história deste país o
governo reduzira, em tão pouco tempo, o escandaloso número de miseráveis. Mas também nunca se aceitara
que a mensuração da miséria brasileira estivesse próxima do patamar abjeto de R$ 125 per capita, menos de um
terço do minguado e arrochado salário mínimo do outrora denunciador
do "arrocho salarial".
Nunca antes na história deste país
um presidente, cuja liderança nasceu
nas autênticas lutas sociais e políticas
de oposição, ficara tão amigo do bárbaro presidente norte-americano e tivera tanta coragem de dizer que
"nunca foi de esquerda".
Nunca antes na história deste país
um presidente da República, em meio
a tanta mudez, falara tão diretamente
com o povo. Algo próximo ocorrera
somente com o velho Getúlio, em longo período, ou com o estranho e bizarro Jânio, em breve tempo. Ou ainda
com o patético Collor, de modo quase
relâmpago.
Nunca antes na história deste país
se tornaram tão acentuadas a falência
e a degradação do poder parlamentar.
Nunca mais na história deste país o
pícaro e o trágico deverão apresentar-se em nome da esquerda, na face mais
visível de um governo cujo principal
partido que o sustenta se originara
em tantas e autênticas lutas sociais e
políticas.
RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 54, é professor titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor, entre outros livros, de "Uma Esquerda fora do Lugar".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Paulo Bonavides: Senado Federal e STF: queda e ascensão Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|