São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O lugar das universidades públicas

HERNAN CHAIMOVICH

A transferência do sistema de universidades (ou Instituições Federais de Ensino Superior, Ifes) do Ministério da Educação para o MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) é uma proposta recorrente em cada mudança de governo e, desta vez, está sendo cogitada tendo como pretexto a importância da incorporação do conhecimento na produção.
A transferência das Ifes para o MCT não fortalece a relação entre conhecimento e produto; pelo contrário, além de enfraquecê-la, pode dificultar as necessárias e urgentes mudanças do sistema brasileiro de ensino pós-secundário e impedir a incorporação da inovação na política nacional de ciência e tecnologia.
Entidades nacionais representativas da comunidade científica, como a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a ABC (Academia Brasileira de Ciências), têm se manifestado, repetidamente, contrárias à transferência do sistema de ensino superior gratuito e federal para o MCT. Essas manifestações, em parte, sustentam-se numa consideração orçamentária simples.
O orçamento das Ifes é de mais de R$ 6 bilhões e sempre faltam recursos. O orçamento total do ministério é de cerca de R$ 2 bilhões, que seriam quase fatalmente incorporados para sanar as necessidades das universidades. Então, o papel do MCT na gestão e no financiamento da interação entre produção de conhecimento e inovação, agora sem orçamento, seria impossível.
No Brasil a proporção de jovens que têm entre 17 e 25 anos de idade e que, terminado o ensino secundário, continuam estudando é da ordem de 12% do total -percentagem essa inferior não só à dos países desenvolvidos, mas menor que a de muitos outros países latino-americanos. Esse mecanismo de exclusão social somente mudará se o sistema de ensino pós-secundário, do qual as universidades são uma parte, vier a se diferenciar comportando estabelecimentos de ensino de diversas naturezas.
Uma parte das universidades públicas federais, bem como das estaduais, tem um forte componente de pesquisa. Nessas, a relação concreta entre o ensino e a pesquisa, e não uma indissociabilidade formal, permite oferecer ensino profissional diferenciado e formar mestres e doutores de uma qualidade comparável às melhores do mundo. Os recursos para pesquisa nessas universidades são adicionais aos orçamentos, provêm de fontes diversas, públicas e privadas, têm função específica e dependem de projetos com metas e responsáveis podendo ser cobrados pelos objetivos propostos.
Esse duplo canal de aporte de recursos é comum; a avaliação e o financiamento paralelo do ensino e da pesquisa são a regra em países mais desenvolvidos.
As mudanças estruturais, a descentralização geográfica da capacidade de produção de conhecimento e o aumento das matrículas nas Ifes são necessidades urgentes no Brasil. O aumento da capacidade de ensino e de produção de conhecimento nas Ifes depende de recursos, mas também de avaliação, para que, sem contingenciamentos, financiamentos pactuados e metas alcançadas sejam respeitados.


É claro que aproximar, no Brasil real, a criação do conhecimento de sua utilização é um desafio

Em particular, todo o sistema de avaliação e financiamento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), ligada ao MEC, possibilitou o enorme avanço da pós-graduação nos últimos trinta anos. Esse projeto nacional foi um sucesso porque, centralizado na pós-graduação como sistema, e não em projetos individuais, permitiu o avanço paralelo da pesquisa e da formação de pessoal.
Recursos orçamentários adicionais para aumentar a qualidade do ensino e o número de matrículas nas Ifes podem ser também pactuados com o MEC. A criação de uma agência independente de avaliação da graduação, no modelo da Capes, dentro do Ministério da Educação, insistentemente proposta pela comunidade acadêmica, poderá permitir um crescimento e desenvolvimento da graduação comparável ao da pós-graduação.
A experiência dos fundos setoriais no apoio à infra-estrutura das Ifes é uma demonstração concreta de que, em havendo recursos, os melhores projetos podem ser financiados, os compromissos assumidos podem ser transparentes e, portanto, cobrados por toda a sociedade. Recursos adicionais para pesquisa e infra-estrutura nas universidades públicas podem também vir do MCT, mas devem ser atrelados a metas pactuadas e a um sistema de cobrança a fim de constituir mecanismos seguros de aumento de qualidade sem mudar a missão das universidades.
É claro que aproximar, no Brasil real, a criação do conhecimento de sua utilização é um desafio. A criação do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação, incluindo o setor produtivo, como proposto na Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, depende do fortalecimento do Ministério da Ciência e Tecnologia, trazendo, por exemplo, a Secretaria de Tecnologia do Ministério do Desenvolvimento para o MCT.
O Ministério da Ciência e Tecnologia tem como responsabilidade precípua a gestão e a articulação dos sistemas de produção e o uso social do conhecimento, ou, como se diz, a articulação entre ciência, tecnologia e inovação.
A responsabilidade do MCT, portanto, não passa pela supervisão do ensino superior, que assim ficaria dissociado do sistema nacional de ensino. A incorporação das universidades a esse ministério, desviando o foco central deste, dificultaria a gestão de políticas públicas integradas para apoio à criação de conhecimento, para fortalecer as relações entre conhecimento e produto e estimular a inovação no sistema produtivo.


Hernan Chaimovich, 63, é diretor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.


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