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São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Como prevenir a violência dos adolescentes

ZILDA ARNS

Quando deparo com as notícias sobre crimes hediondos envolvendo adolescentes, como o ocorrido com Felipe Silva Caffé e Liana Friedenbach, fico profundamente triste e constrangida. Esse caso é a consequência da baixa valorização da prevenção primária da violência por meio das estratégias cientificamente comprovadas, facilmente replicáveis e definitivamente muito mais baratas do que a recuperação de crianças e adolescentes que cometem atos infracionais graves contra a vida.
Talvez seja porque a maioria da população não se deu conta e os que estão no poder nos três níveis não estejam conscientes de seu papel histórico e de sua responsabilidade legal de cuidar do que tem de mais importante a nação: as crianças e os adolescentes, que são o futuro do país e do mundo.
A construção da paz e a prevenção da violência dependem de como promovemos o desenvolvimento físico, social, mental, espiritual e cognitivo das nossas crianças e adolescentes, dentro do seu contexto familiar e comunitário. Trata-se, portanto, de uma ação intersetorial, realizada de maneira sincronizada em cada comunidade, com a participação das famílias, mesmo que estejam incompletas ou desestruturadas.
A prevenção primária da violência inicia-se com a construção de um tecido social saudável e promissor, que começa antes do nascer, com um bom pré-natal, parto de qualidade, aleitamento materno exclusivo até seis meses e o complemento até mais de um ano, vacinação, vigilância nutricional, educação infantil, principalmente propiciando o desenvolvimento e o respeito à fala da criança, o canto, a oração, o brincar, o andar, o jogar; uma educação para a paz e a não-violência.
A Pastoral da Criança, que em 2003 completa 20 anos, forma redes de ação para multiplicar o saber e a solidariedade junto às famílias pobres do país, por meio de mais de 230 mil voluntários, e acompanhou no terceiro trimestre deste ano cerca de 1,7 milhão de crianças menores de seis anos e 80 mil gestantes, de mais de 1,2 milhão de famílias, que moram em 34.784 comunidades de 3.696 municípios do país.



A prevenção primária da violência inicia-se com a construção de um tecido social saudável e promissor

O Brasil é o país que mais reduziu a mortalidade infantil nos últimos dez anos; isso, sem dúvida, é resultado da organização e universalização dos serviços de saúde pública, da melhoria da atenção primária, com todas as limitações que o SUS possa ainda possuir, da descentralização e municipalização dos recursos e dos serviços de saúde. A intensa luta contra a mortalidade infantil, a desnutrição e a violência intrafamiliar contou com a contribuição dessa enorme rede de solidariedade da Pastoral da Criança, um organismo de ação social da CNBB que atua de forma ecumênica em todo o país.
A segunda área da maior importância nessa prevenção primária da violência envolvendo crianças e adolescentes é a educação, a começar pelas creches, escolas infantis e de educação fundamental e de nível médio, que devem valorizar o desenvolvimento do raciocínio e a matemática, a música, a arte, o esporte e a prática da solidariedade humana.
As escolas nas comunidades mais pobres deveriam ter dois turnos, para darem conta da educação integral das crianças e dos adolescentes; deveriam dispor de equipes multiprofissionais atualizadas e capacitadas a avaliar periodicamente os alunos. Urgente é incorporar os ministérios do Esporte e da Cultura às iniciativas da educação, com atividades em larga escala e simples, baratas, facilmente replicáveis e adaptáveis em todo o território nacional.
Todos esses direitos estão previstos na lei; é necessário um amplo debate, principalmente sobre o acesso aos direitos fundamentais, acompanhado da imprescindível decisão política em todos os níveis de governo e da sociedade civil, para a soma de esforços a fim de executar essas políticas. Naturalmente um real controle social, por meio dos conselhos setoriais e dos conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, de forma objetiva e articuladora, poderá ajudar na prevenção da violência e na recuperação de crianças e adolescentes. E um real controle social, por meio dos conselhos setoriais, tutelares e os dos Direitos da Criança e do Adolescente poderá estimular essa ação intersetorial e manter a vigilância para o cumprimento da lei.
Em relação às crianças e adolescentes que cometeram infrações leves ou moderadas -que deveriam ser mais bem expressas-, seu tratamento para a cidadania deveria ser feito com instrumentos bem elaborados e colocados em prática, na família ou próxima dela, com acompanhamento multiprofissional, desobstruindo as penitenciárias, verdadeiras universidades do crime.
Para prevenir o agravamento da violência, o Judiciário deveria prever estratégias para ir ao encontro das comunidades pobres. É o que faz a magnífica juíza Joeci Machado Camargo, com sua equipe do Juizado da 4ª Vara de Família de Curitiba, com excelentes resultados.
Com relação à idade mínima para a maioridade penal, deve permanecer em 18 anos, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e conforme orientações da ONU. Mas o tempo máximo de três anos de reclusão em regime fechado, quando a criança ou o adolescente comete crime hediondo, mesmo em locais apropriados e com tratamento multiprofissional, que urgentemente precisam ser disponibilizados, deve ser revisto. Três anos, em muitos casos, podem ser absolutamente insuficientes para tratar e preparar os adolescentes com graves distúrbios para a convivência cidadã.

Zilda Arns Neumann, 69, médica pediatra e sanitarista, é fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança.


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