UOL




São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Muito além dos impostos

RUY ALTENFELDER

Numerosas nações debatem-se para conciliar o atendimento simultâneo a duas prioridades antagônicas: a solução dos desequilíbrios das contas (externas e/ou internas) e a promoção de crescimento econômico mais substantivo. Nesse cenário, a disputa pelo fluxo de capital no mercado globalizado torna-se mais acirrada, suscitando interessante jogo cambial entre as principais economias. É inegável que o crescente descompasso do setor público dos EUA -que salta de um superávit equivalente a 0,87% do PIB, no final de 2000, para iminente déficit de 4% em 2003- está diretamente associado a essa nova situação.
É preciso ficar alerta, pois, além de eles enfrentarem o mesmo dilema "fluxo de caixa/crescimento econômico", ainda têm forte dependência da poupança externa para a realização de investimentos produtivos. O próprio Estado brasileiro, desde a grave crise fiscal dos anos 80, encarregou-se de debilitar a poupança interna e passou a recorrer cada vez mais, via impostos e títulos públicos, ao dinheiro da iniciativa privada para socorrer os déficits internos e o balanço de pagamentos.
A nova situação internacional precisa ser considerada na reforma tributária. Por quê? Essa é a pergunta que o governo federal e o Parlamento já deviam ter feito e começado a responder com estudos técnicos. É preciso foco, a começar pelas razões concretas de a nação necessitar de uma reforma tributária.
O bom senso e a conjuntura econômica nacional e internacional indicam com clareza os motivos: desonerar a produção e oferecer mais competitividade e condições de crescimento às empresas; reduzir (muito) a dependência dos investimentos produtivos da poupança externa e do dinheiro comprometido com a rolagem da dívida pública e, portanto, contaminado por juros elevadíssimos; diminuir a fragilidade do país com relação ao fluxo do capital especulativo, com grande crescimento das exportações e atração crescente de investimentos produtivos; gerar receita tributária suficiente para o custeio e investimentos do Estado.
Em síntese, a reforma tributária é a oportunidade histórica de mudar os parâmetros e critérios com que o mundo analisa as possibilidades e tendências da economia brasileira. Como nação, temos muito mais potencial, produção, recursos naturais, tecnologia, inteligência e capacidade do que transparece no índice do risco-país. Esse número tem nos colocado no purgatório ou no inferno só com base na possibilidade aleatória de nos tornarmos inadimplentes.



O sistema de tributos tem de fortalecer e fazer aflorar o Brasil que trabalha, produz, exporta, cria empregos

O sistema de tributos tem de fortalecer e fazer aflorar o Brasil que trabalha, produz, exporta, cria empregos; não o Brasil que faz "papagaios" com títulos públicos e impostos escorchantes para rolar suas dívidas. Não podemos canalizar ao setor público praticamente todo o dinheiro disponível para investimentos. Não devemos estimular a guerra fiscal. Precisamos de responsabilidade e critério fiscal, o que se alcança com a extinção dos ralos do dinheiro público, por meio da reforma da Previdência e com essencial lição de casa ainda não feita: um grande Orçamento da União, Estados e municípios, com precisa distribuição de atribuições, evitando a superposição de programas e melhorando a produtividade do setor público.
O projeto de reforma tributária aprovado na Câmara é a antítese de tudo isso. Seu trâmite no Senado, ameaçado pelas pressões em torno da manutenção da guerra fiscal, não apresentou avanços no texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. Com otimismo, pode-se esperar a aprovação neste ano, com validade para 2004, de itens menos importantes. Há até mesmo o risco de que se transfira para uma revisão tributária em 2007 a apreciação dos "pontos polêmicos" -leia-se os que, de fato, representam mudanças estruturais.
Por enquanto, a emenda constitucional em trâmite aumenta a carga de tributos (alíquota do ICMS saltando de 18% para 22%; Cofins maior sobre importação de bens; Cide ampliada para repasse aos Estados; IPVA mais oneroso; progressividade do ITBI; e majoração do imposto sobre heranças e doações). Além disso, estimula a guerra fiscal, em particular com o estabelecimento da cobrança do ICMS no destino, e não na origem -insensatez inédita no mundo em termos de tributos relativos ao valor agregado. Não bastasse tudo isso, o governo ainda vai onerar a pequena e a média empresas com aumento de 157% da Cofins para as prestadoras de serviços, conforme medida provisória editada no início de novembro. Essa "canetada" beneficia apenas as empresas exportadoras e pode provocar numerosas demissões de trabalhadores.
Em 1776, Adam Smith observava não existir "arte que um governo aprenda de outro com maior rapidez do que a de extrair dinheiro do bolso da população". É inconcebível que, 227 anos depois, o Brasil, mantendo carga tributária equivalente a 37% do PIB, continue patinando num dilema filosófico do iluminismo europeu.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 64, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Zilda Arns: Como prevenir a violência dos adolescentes

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.