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São Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Bons Anos

Uma das leis de escrever colunas é ter alguma coisa a dizer aos leitores -é aproveitar o cotidiano do fato, olho no mote, e atirar. Assunto passado e requentado já era. Tudo na sua justa hora.
Neste ano, a minha sexta-feira desta página já ouvia os sinos do Natal, mas parecia longe dele, e a de hoje está na mesma situação, depois dele e longe do fim do ano. Fui atropelado pelas datas.
Assim, melhor falar do que passou e do que virá. O ano de 2003 foi de perplexidades e surpresas. Perplexidade dos que acreditavam no caos, que não aconteceu, e surpresas quanto ao desempenho equilibrado e correto da economia. Agora é esperar o crescimento. Sem crescer, não vamos além das palavras.
A invenção do tempo é extraordinária porque nos faz colocar marcos no nada e, a partir daí, datar e medir as pessoas e as coisas, começando por mensurar o envelhecimento.
Ano, como escala do tempo, é o que mais envelhece. Ninguém representa o dia, a semana ou o mês barbudos, esqueléticos, às vésperas do buracão. Já aos anos se chama de velhos, e sua representação é de debilidade e morte. Papai Noel não envelhece nem remoça. Nasceu velho, velho aparece e desaparece. Por outro lado, não morre. Ninguém viu Papai Noel morto ou doente. Está sempre jovial, vendendo saúde, carregando sacos, puxando o trenó, entrando em chaminés. É um velho ágil. Existia um deus mitológico que tinha o segredo da respiração, por isso não se cansava nem deixava os pulmões pararem.
Eu tenho um amigo que detesta Papai Noel. Acha uma invenção boba e mais bobo ainda o cultivo de sua imagem, enganando crianças e se replicando em disfarces que, sendo um, são todos. E conclui com exasperação: "É um estelionatário".
Exagero? É uma criação boa, só tem aspectos bons, só aparece em dezembro, não chateia o ano todo nem se desgasta. Vai embora e hiberna para o outro ano.
Ano Velho e Ano Novo são diferentes. O primeiro, chegado o dia 31, evapora-se, sem direito à ressurreição. Já o novo se prepara para a mesma tarefa, e nós, com a graça da vida, convivemos com eles dois e outros mais, lembrados por marcas e episódios. Saddam Hussein, certamente, jamais se esquecerá deste ano.
Uma vez uma vidente, que sabia ver a sorte através de número par ou ímpar, olhou, em Araxá, e me disse de supetão: "O senhor quer ganhar uma eleição? Se for em ano ímpar, ganhará. Se par, caia fora". Quando o presidente Castello Branco marcou as eleições de governador para 1965, e não 1966, lembrei-me da cartomante de Araxá e, sem acreditar, comecei a torcer para que fosse verdade. E foi.
Os anos, mais do que os Natais, precisam ser interpretados. Os símbolos que deixaram.
Hoje, com essa história de "tempo real", o tempo foi comprimido: o hoje, o ontem, o presente e o passado ficam todos compactados, e a gente olha para trás como se tudo fosse muito longe. Ao abrirmos essa miniatura, deparamos com um volume de fatos e a velocidade com que aconteceram, tornando tudo como se fosse um século. Nós não temos mais capacidade de digerir o que acontece em cada ano. Precisamos construir um segundo andar em cada ano.
Tudo isso para dizer que quero mesmo é desejar Bons Anos -não só 2004, mas todos os que a vida nos der.


José Sarney escreve às sextas nesta coluna.


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