São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O holocausto brasileiro

CARLOS MIGUEL AIDAR

A crise no sistema penal tem como moldura, atualmente, a atuação das facções criminosas, expandidas por uma série de vetores. As condições desumanas e vexatórias das prisões brasileiras são uma delas e vêm sendo utilizadas como bandeira ideológica pelas organizações criminosas. Elas justificam seus atos violentos como forma de pressão contra os maus tratos que são impostos aos presos na carceragem.
É uma questão ideológica porque envolve valores e comportamentos em busca de determinadas transformações. Ou seja, é uma estratégia utilizada para impor uma visão de mundo ao resto da sociedade brasileira e aos presos comuns. E seu objetivo é acabar com qualquer controle sobre o crime organizado dentro e fora das instituições penais.
O PCC, a mais notória das facções criminosas de São Paulo, fez sua primeira vítima fatal nos ataques desfechados contra o Poder Judiciário -o estagiário de direito Antonio José da Silva, de 35 anos, assassinado durante invasão do Fórum de São Vicente, no dia 19 de fevereiro. Recém-aprovado no exame de ordem, ele iniciaria neste ano sua carreira plena na advocacia, alcançada com muito sacrifício econômico e pessoal.
Silva foi assassinado dentro de um prédio público, o que demonstra que as organizações criminosas expandiram seus tentáculos e, hoje, podem atingir toda a sociedade, sem que as forças de segurança pública consigam fazer um eficiente trabalho preventivo, embora outras bombas há houvessem explodido nos fóruns João Mendes e Criminal, no ano passado.
O Poder Judiciário é desarmado e não pode ficar exposto à sanha vingativa ou reivindicatória do crime organizado. Vivemos uma crise de segurança porque investimentos e iniciativas, só agora definidos, deveriam ter sido adotados há mais tempo. Foi necessário que vítimas inocentes de sequestros, assassinatos, invasões e bombas tivessem de ser oferecidas nesse holocausto imposto pelo crime organizado à sociedade brasileira. Temos de dar um basta à atuação das facções criminosas ou acabaremos reféns de sua ousadia, mesmo do lado de fora dos presídios, onde elas já conseguem se impor de forma hegemônica.


O Poder Judiciário é desarmado e não pode ficar exposto à sanha vingativa do crime organizado


As autoridades públicas precisam romper o ciclo do discurso inconsistente e dar um basta à escalada de violência e ao sacrifício de vítimas inocentes. Caso contrário, o Brasil afundará, de maneira inexorável, nos espaços da barbárie, delimitados pelo crime organizado.
Há muito tempo, dentro das cadeias, as facções já decidem quem vive e quem morre, submetendo os presos comuns ao seu "regramento". O combate à nefasta atuação dessas organizações, no entanto, não pode embotar nosso entendimento sobre a lei. O Estado precisa garantir ao encarcerado o mínimo de dignidade para cumprir sua pena, mas com celas superlotadas, sem as mínimas condições de higiene e privacidade, vem impondo um "castigo" adicional não estabelecido pela Justiça. Esse quadro, em vez de surtir o efeito desejado de punir, transforma-se em um terreno fértil para as facções criminosas.
A capacidade de organização das facções criminosas já tinha sido dimensionada durante a megarrebelião em fevereiro do ano passado, que mobilizou 29 unidades prisionais em todo o Estado. Assim, como em 2001, as autoridades públicas falharam ao subestimar seu poder; podem falhar, novamente, se atribuírem a sequência de atos criminosos a uma simples disputa de facções ou a uma forma de resposta ao endurecimento da ação policial dentro do sistema carcerário.
Não existe democracia sem paz social, devendo o Estado utilizar meios de coerção e força, com base na lei, para preservá-la. A segurança pública tem um papel fundamental na manutenção do Estado democrático, que está a exigir mais ação e menos discurso, mais vigor e menos leniência e, sobretudo, um planejamento estratégico que contemple, de maneira profunda e duradoura, as reais demandas da sociedade brasileira por segurança. O que intimida a violência não é o incremento da pena, mas a certeza do fim da impunidade.
Se no país já vivemos a experiência de ter um "Estado" dentro de um Estado, com a ação do crime organizado decretando leis próprias para determinadas comunidades, agora temos essa experiência ampliada com nefastas repercussões para a sociedade. O poder público não pode ser tolerante para não incorrer no erro de, ao ter pena do diabo, ocupar o lugar dele. Demonizar o crime organizado é dar a devida dimensão à sua tentativa de dominação opressiva da vida dos brasileiros, que povo e Estado devem repelir com veemência, sob pena de viverem um holocausto.


Carlos Miguel Aidar, 54, advogado, é presidente da seccional paulista da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).



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