São Paulo, sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Quaresma e bingo

O Brasil está dividido em quatro estações: Carnaval, Semana Santa, São João e Natal. E ainda micaretas e campeonatos. Fora daí, é procurar mudanças, dessas que equilibram o cosmos, e não encontrá-las. No Nordeste, por exemplo, só existem inverno e verão. O tempo que chove, e às vezes nem isso ocorre, e o tempo que não chove, sol no sertão e, na costa, praia e maresia.
Na Amazônia, são duas estações por dia. De manhã, não chove: de tarde, chove sempre. Em Belém, chegamos até a marcar encontros a hora fixa: "depois da chuva".
De São Paulo, não é raro dizer que tem as quatro estações todo dia. A dificuldade é acertar a roupa ao tempo predominante.
Melhor não ligar para o tempo, e sim para as festas, que não se esgotam nos seus dias. De festa não se entra e se sai de chofre. Há tempo de preparação e tempo de desaceleração. Veja-se o Carnaval: ele emenda com o fim do ano, começa no Réveillon e vai se arrastando até a Quarta-Feira de Cinzas, num crescendo de allegro e de gran lambada.
Como sinal dos tempos, com a teoria da desaceleração, o Carnaval está entrando na Quaresma: na Bahia, continua e, no Maranhão, inventaram, no primeiro sábado da Quaresma, a "morte do Carnaval", que nada mais é do que um outro Carnaval e, em vez de morte, ressurreição.
É a identidade brasileira que se afirma na cultura da alegria, que nos veio da África e que funciona independentemente dos bingos e da chuva.
Nada mais democrático do que o Carnaval. Não tem ingresso e, para desfrutá-lo, basta apenas ter vontade de cair na gandaia. É a igualdade absoluta. Até as fantasias luxuosas são feitas para os olhos de todos, e a mais bonita das fantasias passou a ser não ter nada no corpo, só aquilo que Deus botou no mundo.
Roberto Campos foi quem cunhou a definição de que o biquíni mostra tudo, mas esconde o essencial. O contrário do famoso e mais sensual striptease conhecido, que foi o de Rita Hayworth em "Gilda", quando levava o público ao êxtase escondendo e sugerindo a beleza do seu corpo, mas só tirando a luva. No Carnaval, tira-se tudo, só ficam a luva e o samba no pé, que não dá tempo para a sensualidade. Nada mais pudico do que o nu das alegorias das escolas de samba. Chega a ser triste.
Mas é tempo de cinzas, de não jogar mais, e acho que Lula bateu o bingo na hora certa. E desarmou essas máquinas de jogar, programadas eletronicamente para assaltar. Diz-se que vai haver a volta do jogo do bicho, que, por ser tão pobre e de pobre, só funciona na clandestinidade. Era outra a intenção do barão de Drumond. O jogo do bicho é coisa complicada. É preciso sonhar para ter o palpite, saber interpretá-lo e, às vezes, até consagrar mensagens eternas. Não foi por outro motivo que no dia da morte de Rui Barbosa deu águia e, na posse de Color, zebra.
Mas nem por isso deixemos o essencial de lado. A Quaresma é tempo de meditação. E temos tanta coisa a meditar: não só a ausência da guerra, mas a paz interior, o estado de graça. Meditemos sobre a necessidade de melhorarmos nossos costumes políticos, não conspurcar a vida pública, dar exemplo de responsabilidade e consciência moral de deveres.
Estamos em mais uma rotina da repetição do calendário. Cinzas, simbologia de que virá o renascer dos anos. Ainda bem.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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