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JOSÉ SARNEY
Quaresma e bingo
O Brasil está dividido em quatro
estações: Carnaval, Semana Santa, São João e Natal. E ainda micaretas
e campeonatos. Fora daí, é procurar
mudanças, dessas que equilibram o
cosmos, e não encontrá-las. No Nordeste, por exemplo, só existem inverno e verão. O tempo que chove, e às
vezes nem isso ocorre, e o tempo que
não chove, sol no sertão e, na costa,
praia e maresia.
Na Amazônia, são duas estações por
dia. De manhã, não chove: de tarde,
chove sempre. Em Belém, chegamos
até a marcar encontros a hora fixa:
"depois da chuva".
De São Paulo, não é raro dizer que
tem as quatro estações todo dia. A dificuldade é acertar a roupa ao tempo
predominante.
Melhor não ligar para o tempo, e sim
para as festas, que não se esgotam nos
seus dias. De festa não se entra e se sai
de chofre. Há tempo de preparação e
tempo de desaceleração. Veja-se o
Carnaval: ele emenda com o fim do
ano, começa no Réveillon e vai se arrastando até a Quarta-Feira de Cinzas,
num crescendo de allegro e de gran
lambada.
Como sinal dos tempos, com a teoria da desaceleração, o Carnaval está
entrando na Quaresma: na Bahia,
continua e, no Maranhão, inventaram, no primeiro sábado da Quaresma, a "morte do Carnaval", que nada
mais é do que um outro Carnaval e,
em vez de morte, ressurreição.
É a identidade brasileira que se afirma na cultura da alegria, que nos veio
da África e que funciona independentemente dos bingos e da chuva.
Nada mais democrático do que o
Carnaval. Não tem ingresso e, para
desfrutá-lo, basta apenas ter vontade
de cair na gandaia. É a igualdade absoluta. Até as fantasias luxuosas são feitas para os olhos de todos, e a mais bonita das fantasias passou a ser não ter
nada no corpo, só aquilo que Deus botou no mundo.
Roberto Campos foi quem cunhou a
definição de que o biquíni mostra tudo, mas esconde o essencial. O contrário do famoso e mais sensual striptease conhecido, que foi o de Rita Hayworth em "Gilda", quando levava o
público ao êxtase escondendo e sugerindo a beleza do seu corpo, mas só tirando a luva. No Carnaval, tira-se tudo, só ficam a luva e o samba no pé,
que não dá tempo para a sensualidade. Nada mais pudico do que o nu das
alegorias das escolas de samba. Chega
a ser triste.
Mas é tempo de cinzas, de não jogar
mais, e acho que Lula bateu o bingo na
hora certa. E desarmou essas máquinas de jogar, programadas eletronicamente para assaltar. Diz-se que vai haver a volta do jogo do bicho, que, por
ser tão pobre e de pobre, só funciona
na clandestinidade. Era outra a intenção do barão de Drumond. O jogo do
bicho é coisa complicada. É preciso
sonhar para ter o palpite, saber interpretá-lo e, às vezes, até consagrar
mensagens eternas. Não foi por outro
motivo que no dia da morte de Rui
Barbosa deu águia e, na posse de Color, zebra.
Mas nem por isso deixemos o essencial de lado. A Quaresma é tempo de
meditação. E temos tanta coisa a meditar: não só a ausência da guerra, mas
a paz interior, o estado de graça. Meditemos sobre a necessidade de melhorarmos nossos costumes políticos,
não conspurcar a vida pública, dar
exemplo de responsabilidade e consciência moral de deveres.
Estamos em mais uma rotina da repetição do calendário. Cinzas, simbologia de que virá o renascer dos anos.
Ainda bem.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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