São Paulo, sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A encruzilhada ética do PT

ROBERTO ROMANO

Quando faleceu Norberto Bobbio, líderes do PT elogiaram o filósofo. Eles o conheciam ou leram seus textos. Imagino, no entanto, diante das suas atitudes no caso das propinas a 1%, que não foram compulsados os textos de Bobbio sobre ética e política.
Em "Corruptos e Eleitos", o jurista cita B. Croce, um pensador contrário à pura aplicação de preceitos morais à política. "Ninguém", diz Croce, "quando se trata de curar as próprias doenças ou de sofrer uma cirurgia, pede um homem honesto, mas todos exigem médicos e cirurgiões." O mesmo valeria para o político, cuja virtude é a eficácia.
Bobbio recusa o juízo de Croce e afirma que o seu erro lógico é não levar em conta a diferença entre honestidade como virtude válida para todos os homens, virtude da qual não se pode prescindir na análise do "bom" médico ou político, e a honestidade específica de todos os profissionais, unida à conduta correta de uma pessoa no exercício da sua profissão.


Ameaçar os demais partidos com uma devassa nas contas eleitorais e quejandos significa confissão de culpa


É possível reconhecer os médicos e os políticos honestos, separando-os dos desonestos. Desprovido de honestidade é quem prescreve remédios inúteis para obter vantagens da indústria farmacêutica. E também o profissional que realiza uma cirurgia com plena consciência de seu risco e ineficácia. Existem médicos competentes e desonestos. O mesmo pode-se dizer do político.
Homem público desonesto não é apenas o notório larápio, mas o que trata só de obter vantagens para seu agrupamento. A liderança que opera tendo em vista os seus fins, sem respeito pela totalidade de um país, é corrupta e fonte de corrupção. "Isto é bom para nós", "isto é ruim para nós" são fórmulas canônicas dos políticos corrompidos.
O PT seguiu durante 24 anos uma rota equivocada na ação pública. Ignorando o fato elementar de que todos os movimentos, instituições, partidos, classes possuem indivíduos honestos e desonestos, ele decretou para si o monopólio do rigor ético. Nessa faina, arruinou reputações, destruiu estadistas em potencial, injetou intolerância e maniqueísmo na vida social. A verdade sobre a pretensa agremiação imaculada encontra-se em Elias Canetti: "Nunca vi um homem deblaterando contra o poder sem o desejo secreto de possuí-lo".
Instalados nos palácios, os líderes petistas perderam a pele alva. Eles vestiram, contentes, as fantasias do "realismo político". E o realismo não possui limites. Sua lógica é expansiva e sem retorno. Um escorregão aqui, um jeitinho dali, ameaças aos opositores, pressões sobre a imprensa, mordaça para o Ministério Público, desmoralização do Judiciário, política do estrito "do ut des" -ou da troca generalizada- no Parlamento: abrem-se as portas da corrupção. A leniência gera leniência.
O chefe da Casa Civil é político competente. E nomeou um outro homem público competente, cuja ortodoxia ética revelou-se nula. É preciso que tanto o ministro quanto seu partido respeitem a inteligência dos cidadãos. Ou ele sabia o que foi feito (e possivelmente continuou a ser feito pelo auxiliar), ou ignorava. No primeiro caso, apenas um procedimento isento pode definir o verdadeiro. No segundo, cai por terra a competência do ministro.
Os dois aspectos implicam toda a República e não podem ser julgados apenas no âmbito do que é bom para o PT. Pior de tudo é a tática governista. Ameaçar os demais partidos com uma devassa nas contas eleitorais e quejandos significa plena confissão de culpa. "Um homem nosso foi pego com a boca na botija, mas sabemos que os seus fizeram o mesmo. Se vocês quiserem nos entregar, abrimos a caixa preta e aparecerá a sujeira de todos." Tal "modus operandi" não marca nenhuma política séria. Ele define a ética da "omertà". Se a oposição aceita a manobra, ela se desmoraliza com o PT.
A imprudência do governo chegou ao insuportável. Se vigorar a tática assumida hoje, o Brasil saberá que os valores morais, naquela agremiação, eram apenas propaganda. Receita perfeita de niilismo e desastre político.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.


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