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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A regularização e a urbanização das favelas

NELSON KOJRANSKI

Reportagem publicada no caderno Cotidiano da Folha em 12/2, ao alertar que a "Cidade ganha uma favela a cada oito dias", retratou corretamente a pavorosa dimensão do problema social da moradia. Trata-se de incontrolável calamidade pública, que não encontrará solução na outorga (impossível a curto prazo) de títulos concessivos de direitos possessórios ou de propriedade. Não merece nenhuma censura a prometida concessão de títulos, de propriedade ou de posse, tendo por objetivo ético "oferecer cidadania por meio de um título de propriedade", como revelou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Também não cabe discordar do louvável propósito do Ministério das Cidades, no sentido de fazer cumprir a função social da propriedade. A divergência reside apenas no como fazê-lo. A ministra-adjunta das Cidades, Ermínia Maricato, aflorou a dificuldade, ao declarar que "urbanistas precisam aprender com juristas e juristas precisam aprender com urbanistas", a sinalizar a inviabilidade de solução jurídica, sem o prévio tratamento urbanístico da favela.
Urge, pois, encontrar o ponto de harmonia entre o poder central (Ministério das Cidades) e o poder municipal, cabendo a este a execução dos serviços de urbanização e àquele a normatização a ser observada na concessão dos títulos de posse ou de propriedade.
A opção jurídica pela concessão (pretensamente imediata) de direito de posse tem por alvo o solo ocupado pela favela -que, em regra, invadiu propriedade particular. Neste comentário, exclui-se a hipótese do domínio público das áreas ocupadas; hipótese em que a regularização da ocupação por favelas dessas áreas depende tão-só de sua desafetação. A partir daí, as áreas (as particulares e as que eram públicas) são equivalentes para serem submetidas à regularização imobiliária da "propriedade" a ser destinada a cada favelado.


Afigura-se difícil a regularização jurídica das favelas sem antes submetê-las à urbanização


Por isso, diferentemente do preconizado no par. 4º do art. 10, da lei nº 10.257, de 10/7/2001 (Estatuto da Cidade), afigura-se difícil, ou mesmo impossível, a regularização jurídica das favelas sem antes submetê-las à urbanização, consistente na execução de obras e serviços dos mais elementares, como a abertura de vias de circulação, a identificação das casas e/ou dos seus moradores e a implantação de serviços de distribuição de água, esgoto e energia.
A dificuldade da regularização jurídica não reside na falta de legislação aplicável. Bem ao contrário. Ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição, o denominado Estatuto da Cidade criou a chamada "usucapião especial coletiva", visando "as áreas com mais de 250 m2, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia..." (art. 10). Com a atribuição a cada possuidor de igual fração ideal de terreno, será criado um "condomínio especial" marcado pela indivisibilidade, cuja urbanização depende da deliberação da maioria de dois terços.
Vale dizer que o legislador tornou inviável a urbanização da favela, já que, necessariamente, esta implicará inevitável perda de áreas ocupadas por barracos, para ensejar a abertura de vias de circulação. E, mesmo que fosse alcançado tão elevado quorum, certamente a rebelião do terço restante resistiria violentamente à perda da propriedade de suas respectivas frações ideais do terreno. Daí indicar o bom senso que a urbanização das favelas deve, por lógica, preceder a regularização imobiliária, enquanto os favelados ainda não são qualificados de condôminos, protegidos pelo direito real da propriedade, já que o art. 55 do Estatuto da Cidade prevê o registro das sentenças de usucapião, "independente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação".
Fácil, aliás, é antever a impossibilidade de ser satisfeito o requisito legal em aventada "usucapião especial coletiva", na qual deverão figurar, pessoalmente identificados, os integrantes de cada favela. A própria reportagem deste jornal revela que o Centro de Estudos da Metrópole apurou uma população favelada, no ano 2000, da ordem de 1,16 milhão, distribuída por mais de 2.000 favelas. O óbice numérico não para aí. Os estudos feitos apontam para a expansão das favelas na proporção de 74 pessoas por dia e a dificuldade de ser eleito ou designado um líder que represente a comunidade favelada.
Nem por isso é de desviar do preceito constitucional que ordena a efetiva função social da propriedade, agora também codificada no novo Código Civil, cujo art. 1.228, no par. 4º, prevê a desapropriação de extensa área, que se encontre "na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas...". De pronto, fácil é imaginar a dificuldade (ou impossibilidade) de agregar os milhares de favelados na expropriação de área reivindicada.
Vale observar que, nos dois remédios legais (a usucapião especial coletiva e a desapropriação pelos favelados), não se verifica a direta intervenção do Executivo. O poder de comando da regularização das favelas é judicial. Daí ser imprescindível a convocação da advocacia graciosa para representar os favelados nas ações judiciais. Por isso, e só por isso, deve-se reconhecer que a mera concessão de títulos possessórios pouco ou nada contribuirá para alterar a realidade social, se, antes, as favelas não forem urbanizadas. Cabe alertar que os títulos preconizados pelo Código Civil nem sequer encontram abrigo no registro imobiliário, para merecerem o respeito público do "erga omnes". Seriam dotados, na melhor das hipóteses, do efeito de um certificado de residência que pouco acrescentaria ao resgate da dignidade do favelado.
Urge, pois, a adoção de medidas mais práticas e racionais, a começar da urbanização, com a identificação de seus moradores que, no futuro, serão os moradores de uma nova espécie de condomínio: um condomínio atípico, híbrido por excelência, enquanto não tiver normatização apropriada.

Nelson Kojranski, 75, advogado especializado em direito imobiliário, é presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo.


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