UOL




São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Cuba, uma ilha à deriva

SAULO RAMOS

Jânio Quadros era candidato a presidente da República e me telefonou dizendo que faria uma viagem a Cuba, cuja revolução vitoriosa fascinara a nossa geração. E me convidou. Muita gente boa na comitiva: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo de Tarso Santos e, entre outros, o Carlão Mesquita, que foi a alegria da turma tanto nos vôos como nos hotéis e nas repetidas reuniões com os políticos cubanos, naquela época todos americanistas convictos desde o dia em que Fidel Castro desfilou triunfante em Nova York sob chuva de papel picado, posto que a revolução contra Fulgencio Batista foi consentida (e financiada) por Washington.
Em Havana, o embaixador brasileiro, Leitão da Cunha, ofereceu um jantar para a caravana em homenagem a Fidel Castro e Che Guevara, nossos heróis. Quando chegaram as duas ilustres figuras, os brasileiros cercaram o Che, que tinha muito mais carisma, embora de uma simplicidade comovente. Fidel era mais posudo, ostentando a farda militar e, ao entrar (chegou depois do Che), deixou o revólver no banheiro da entrada da embaixada, como nos tempos de baile do faroeste americano.
Da reunião, dois fatos ficaram registrados na minha memória: a inveja, sem disfarce, que Fidel tinha de Guevara -inveja ostensivamente aristotélica; e um susto geral: roubaram o revólver do Fidel, que saiu furioso e xingando os brasileiros, sob as desculpas do embaixador e os tapinhas nas costas dados pelo Jânio.
Era, evidentemente, um ato de gozação e, por isso, todos nós, quando voltamos para o Hotel Rivera, caímos em cima do Carlão. Só podia ser ele. Jurou inocência. E ninguém ficou sabendo quem foi, a não ser Eduardo Lago, hoje diplomata aposentado, mas que se nega a contar o fim da história. Tenho certeza de que ele sabe. Inclusive, quando Fidel gritava se tratar de uma relíquia da Sierra Maestra, alguém informou ser mentira: a arma era um parabelum russo 9 mm, presente recente do embaixador soviético Anastas Mikoyan, que estava iniciando seu processo de sedução.


Qual a diferença entre Bush e Fidel Castro no uso do pretexto de terrorismo para justificar atos de banditismo?


O tempo passou. Jânio foi eleito e renunciou. Rubem Braga e Carlão Mesquita morreram, deixando-nos com saudades imensas. Jânio também. Cuba tornou-se comunista e baluarte do antiamericanismo da América Latina. Fernando Sabino ficou rico publicando um livro sobre Zélia Cardoso de Mello no governo Collor. E Paulo de Tarso advoga em São Paulo.
Jamais deixei de acompanhar com atenção a política de Cuba, sobretudo as relações entre Fidel e Guevara. Che era um comunista romântico e sonhador, certo de que poderia repetir a proeza da Sierra Maestra em outros países, mesmo sem consentimento dos americanos... Depois de uma incursão fracassada na África, teve a idéia de fazer guerrilha na Bolívia. Planejou tudo em Havana, inclusive o treinamento de guerrilheiros que o acompanhariam, entre eles Juan Pablo Chang Navarro e Julio Dagmino Pacheco. Fidel Castro conhecia os planos em todos os detalhes, inclusive locais de ação e alternativas de deslocações.
Na Bolívia, era ministro de Estado o tal de Antonio Arguedas, temível e violento perseguidor de terroristas. Ele coordenou a caçada a Che Guevara, com assessoria da CIA, por ele especialmente convidada. E foi direto ao lugar onde Che estava escondido na selva, mais certeiro que os mísseis modernos guiados por satélite.
E, no dia 9 de outubro de 1967, Guevara foi encontrado, amarrado a uma cadeira e assassinado com um tiro no peito. Teve as mãos cirurgicamente extraídas e guardadas em formol. O tal de Arguedas ficou com elas. No ano seguinte, esse mesmo tal de Arguedas abandonou a Bolívia e foi viver -adivinhem onde?- em Cuba! Levou as mãos de Guevara, dizendo que as entregaria à viúva, um gesto macabro e repulsivo que ninguém entendeu. Mais parece a prova de que se serviam os pistoleiros para receber recompensa pelos contratos executados. Não mereceu a menor censura de Fidel e em Cuba passou a viver com regalias, a tal ponto que se desconfiou ter sido ele um agente do ditador cubano na Bolívia. Confiram os jornais de Lisboa, julho de 1968, e "O Estado de S. Paulo" de 28 de novembro de 1995.
Na aventura boliviana, ao lado de Guevara lutou o francês Régis Debray, preso e depois libertado. Na França, em 1996, Debray publicou um livro ("Loués Soient Nos Seigneurs") criticando Fidel Castro e suscitando dúvidas sobre como o esconderijo de Guevara foi encontrado pelos militares bolivianos. Quatro meses depois, uma senhorita chamada Aleida, que se proclama filha de Guevara, em entrevista ao jornal "El Clarín", de Buenos Aires, acusou Debray de haver delatado a localização de Guevara na Bolívia (Folha, 3/9/1996). Em carta ao "Le Monde", jornal de Paris, Debray fez uma revelação curiosa: a versão foi encomendada por Cuba e a senhorita Aleida é fortemente ligada a Fidel.
Agora, neste mês de abril de 2003, Fidel Castro mandou fuzilar três cubanos que pretendiam fugir de Cuba e tomaram um barco de passageiros cuja gasolina acabou -igual ao carro do Rubinho- e, como a própria ilha, ficou à deriva no mar do Caribe. Acusados de terrorismo, foram assassinados rapidamente, sem direito ao processo judicial. No outro lado da ilha, numa base militar chamada Guantánamo, que pertence aos EUA, país atualmente sob a direção de Bush, estão presos homens do Afeganistão também acusados de terroristas e em condições subumanas, sem direito a nenhuma medida judicial, por não estar a tal base em território norte-americano. Que ilha infeliz!
Qual a diferença entre Bush e Fidel Castro no uso do pretexto de terrorismo para justificar atos de banditismo? Creio que Bush é melhor (vejam que tristeza!), porque sobre ele não paira nenhuma suspeita de haver contribuído para a morte de um amigo que poderia evitar sua perpetuação no poder, embora Saddam Hussein tenha sido cria dos EUA, que, apesar dos pesares, mantêm eleições -mal apuradas, mas democráticas.
Até Saramago, escritor português comunista que, por isso mesmo, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura (eu preferia o Jorge Amado, muito melhor), declarou não mais querer saber de Fidel Castro, a quem apoiava como ídolo.
Vamos repetir Debray: "Louvados sejam nossos senhores!". E louvado seja aquele que furtou o revólver de Fidel na Embaixada do Brasil em Havana, gesto simbólico de desarmamento de um perigoso e irrecuperável ditador -e mentiroso- que, infelizmente, continua no poder há meio século.

José Saulo Pereira Ramos, 73, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Mauro Morelli: Lula e a CNBB

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.