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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e a CNBB

MAURO MORELLI

A provável visita do presidente Lula à próxima Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mais do que reavivar memórias, traz à tona o testemunho e as profecias da CNBB ao longo dos anos da ditadura que produziu uma economia avantajada em chocante contraste com a exclusão social de aproximadamente um terço da nação brasileira. Nosso país, grande produtor de alimentos para exportação, convive com legiões de famintos e desnutridos.
Faz-se necessário precisar o conceito de profecia, pois não se trata, certamente, do futuro eleitoral do atual presidente ou, mesmo, de um anúncio presumido e presunçoso -ou quiçá blasfemo- do fim dos tempos. O profeta, no meio do povo, com o olhar aguçado pelas noites de vigília, percebendo as contradições da história, revela os desatinos da civilização na direção inversa da sabedoria amorosa do criador de tudo e de todos.
O exercício da escuta da palavra de Deus, longe do burburinho e das atrações da futilidade das cortes e dos salões, não permite que os profetas sejam seduzidos pelo poder nem enganados pela aparência, por isso sempre foram a consciência do Israel antigo ou do novo.
Assim, Jorge Marcos de Oliveira, bispo dos operários e fundador da diocese de Santo André, sempre esteve na mira do Departamento de Ordem Política e Social. A consciência da própria dignidade e do valor do trabalho humano, que marca a história dos movimentos sociais e sindicais do ABC paulista, foi alimentada pelo testemunho e pela pregação profética daquele fascinante pastor. Sem a defesa dos presos políticos e o brado corajoso de Paulo Evaristo Arns e dos bispos paulistas contra a tortura, o Brasil não teria se libertado do regime do terror e da barbárie.


Deveremos esperar outro presidente ou romperemos os grilhões que mantêm o Brasil refém da economia mundial?


Não menor profecia foi a "Declaração Pastoral ao Povo de Deus" e tantos outros documentos e pronunciamentos da CNBB sobre as exigências cristãs para a construção de uma ordem política, econômica e social que fizesse justiça aos pobres da terra e que fosse comprometida com a dignidade humana e com a cidadania de cada habitante do país.
Nosso operário presidente, em sua luta pelo direito e pela justiça, certamente muito aprendeu com o testemunho de tantos profetas e com as profecias da CNBB. Quando atravessar os longos corredores que conduzem ao salão da plenária, para se encontrar com os bispos da CNBB, o presidente Lula certamente encontrará muitos amigos e companheiros, mas, acima de tudo, corações vigilantes e lábios murmurando preces e tantas perguntas.
Mesmo com simpatia e esperança, algumas questões serão levantadas nesse encontro. Deveremos esperar outro presidente ou romperemos os grilhões que mantêm o Brasil eterno refém da economia mundial?
Temos coragem e competência para fazer um pacto social que valorize as diferenças, abomine e acabe com as desigualdades escandalosas e blasfemas entre indivíduos e regiões do país, ou será mantida a violência estrutural que priva a maioria da população de vida com dignidade e esperança? A economia fará o bolo crescer, enquanto o salário permanece um dos mais injustos e vergonhosos do mundo? As terras indígenas serão definitivamente delimitadas, segundo determina a Constituição brasileira? O povo negro, ao lado dos indígenas, permanecerá o mais pobre entre os pobres? Seremos um país culto e solidário ou continuaremos prisioneiros da corrupção e da impunidade?
Conviveremos com abortos, torturas nas delegacias de polícia e toda a sorte de violência? O meio ambiente será ainda depredado, nossas riquezas saqueadas e a terra prisioneira do capital e do latifúndio?

Dom Mauro Morelli, 67, é bispo católico de Duque de Caxias (RJ) e membro da coordenação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional.


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