São Paulo, terça-feira, 27 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pervertidos e cruéis

JORGE BOAVENTURA

O leitor, inteligente, compreende que a inexorável limitação do espaço disponível para um artigo da imprensa diária levanta barreira quase intransponível para a exposição de assuntos realmente graves e que vêm sendo, sistemática e deliberadamente, ocultados do conhecimento geral. Ocultamento que, em muitos casos, tem sido praticado ao longo de séculos e por intermédio de uma massa colossal e multiforme de meios e de recursos.
Tudo isso nos impõe o uso de linguagem telegráfica que, por mais de um motivo, parecerá à primeira vista chocante.
Por exemplo, o que tem sido designado como democracia, e já agora pretende ser imposto à força pelos cruéis chefes de Estado que a adotam, não passa de uma forma depravada e pervertida do verdadeiro ideal democrático, depravação e perversão que se estabeleceram, deliberadamente, a partir do artigo 6º da "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", proclamada em 1791, como conseqüência e como fruto realmente objetivado pelos que levaram a cabo a revolução de 1789, quase todos agnósticos, ateus, livres-pensadores, adeptos de uma religiosidade individual, que deram à França um banho de sangue e a instalação do terror, durante o qual milhares de religiosos foram assassinados e numerosas igrejas foram transformadas em aquartelamento de tropas, estrebarias e depósitos de armas e munições.
Essa a realidade histórica indiscutível da famosa revolução da qual, entretanto, é quase certo que o leitor só terá ouvido elogios, como base da liberdade.
Mas de qual liberdade? Daquela figurada na entrada do porto de Nova York -que foi presente do governo francês aos EUA- e que, indefinida quanto a contornos e a limites, consagra a absurda e desonesta confusão entre esse valor sublime que, no plano metafísico, caracteriza-se pelo atributo de não sofrer restrições, mas que, no plano do exercício por parte de seres imperfeitos como somos todos, deve levar em conta o que disse, a respeito, John Salisbury, segundo quem "o dom da liberdade só era comparável ao da virtude, se é que se pode falar de liberdade na ausência da virtude, ou desta na ausência dela".


O que tem sido designado como democracia não passa de uma forma depravada do verdadeiro ideal democrático


E é aí que sobreleva a importância do famoso art. 6º. O que diz ele? "A lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes." E mais adiante: "Ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude de lei".
A nobre aparência do que acabamos de registrar permitiu a sua inserção como característica básica da depravação do ideal democrático, que vêm tentando impor ao mundo a qualquer custo e a qualquer preço. E poucos, pouquíssimos, dão-se conta de que aquelas palavras, aparentemente tão nobres, desvincularam o processo da civilização ocidental de sua fonte cultural, inquestionavelmente consistente nas sagradas escrituras, o Antigo e o Novo Testamento, eis que as raízes da nossa civilização são judaico-cristãs, e tudo passou a depender da opinião de maiorias volúveis, cuja composição e produto de elaboração passaram a depender dos que dispõem dos meios eficazes para, atuando sobre o emocional das massas, tangê-las para as urnas. Tudo, de resto, no particular, baseado em outro erro crasso, consistente em supor que maiorias são fontes necessárias de verdade -o que ninguém realmente sério pode levar a sério.
E os verdadeiros senhores do mal vêm ultrapassando todos os limites, produzindo a consagração de outros erros crassos, que o espaço de que dispomos não nos permite arrolar. Daremos, porém, alguns poucos exemplos, para evidenciar o grau de demoníaca perversão dos verdadeiros senhores do mal, que se auto-insinuam defensores do ideal democrático, que diariamente conspurcam e maculam.
Sabe o leitor a quanto monta, hoje, o mercado internacional de armas, inteiramente dominado por aqueles senhores? A algo que se aproxima de US$ 1 trilhão e cujos produtos obsoletos são vendidos aos países emergentes ou periféricos e, no caso da África Subsaariana, para alimentar as guerras que já produziram muitos milhões de mortos, travadas sem que nenhum dos litigantes produza as armas com que se estão matando. Angola tem uma enorme parcela de sua população constituída por mutilados em conseqüência de minas terrestres que não foram produzidas ali.
E sabem os leitores quem faz a lavagem das centenas e centenas de bilhões de dólares movimentados pelo crime organizado? São os bancos e corporações financeiras, cujos acionistas e dirigentes compõem as sociedades "democráticas" do Primeiro Mundo.
Onde estará, assim, o "eixo do mal"? Nos senhores Osama bin Laden e seus asseclas?
Algum tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, tive a oportunidade de visitar a Alemanha Ocidental, a convite do seu governo. Em Hamburgo, fui levado por cicerone para visitar o bairro boêmio da "Paris do Norte", ver alguns frutos da "liberdade" que havia sido restaurada. Entre eles, os grandes anúncios de espetáculo oferecido -com promessa de devolução do dinheiro ao cliente que não se satisfizesse-, que era nada mais, nada menos do que o de mulheres sendo copuladas por cães. Vilipêndio da espécie humana, tornado possível por todas as razões que o leitor pode perceber. É um horror, mas é a verdade. E expô-la é o dever fundamental imposto pelo respeito ao público, devido pelos que têm o privilégio de se comunicar com ele.

Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.


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