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DEMÉTRIO MAGNOLI
Impostura
A denúncia apresentada pelo
procurador-geral contra a "organização criminosa" articulada à sombra do Planalto para corromper parlamentares, estabilizar uma maioria no
Congresso e avançar o "projeto de poder" petista é o retrato acabado do governo. Ao contrário do que sugere Lula, esse retrato não se modificará ao
sabor do destino dos processos judiciais individuais abertos pela denúncia, que descreve uma ação coletiva,
de "quadrilha". É por isso que o PT, o
aparelho político do qual emanou a
"organização criminosa", que antes
proclamava-se "diferente", hoje difunde o conceito de que "todos são
iguais" e a noção de que a corrupção
sistêmica no governo é a continuidade
de um padrão vigente no "octonato"
de FHC.
Muitos anos atrás, Lula cunhou a célebre acusação contra os "300 picaretas" do Congresso, uma frase cuidadosamente genérica, que lhe granjeou
aplausos sem gerar a obrigação de formalizar denúncias e arrostar as conseqüências correspondentes nas arenas
política e judicial. Aquela foi a senha
para a onda de acusações de corrupção lançadas contra o governo FHC,
que ganharam aura de verdades incontestáveis, mas, com exceções periféricas, nunca se traduziram em investigações formais. O caso mais notório,
pelos valores envolvidos e pela pretensão de atingir a espinha dorsal do governo, foi a alegação de desvios bilionários do dinheiro das privatizações.
Na época, as acusações não prosperaram como inquéritos no âmbito judicial ou parlamentar. Os acusadores,
impávidos, atribuíram a culpa à inação do antigo procurador-geral e ao
bloqueio promovido pela maioria governista no Congresso. Mas eles se tornaram governo e, mesmo dispondo
de todos os meios de investigação,
preferiram conservar as antigas acusações no limbo. O expediente, que é
uma modalidade de prevaricação, cobre a política brasileira com o pesado
manto da suspeita e nutre uma narrativa conveniente da qual se lança mão
em conjunturas de necessidade.
A estratégia não se sustentaria sem a
colaboração, proposital ou não, de comentaristas políticos que a tomam de
empréstimo para certificar a sua própria "independência". No conforto
proporcionado pela irresponsabilidade, esses comentaristas flertam com o
senso comum e, imaginando-se "neutros", sequer suspeitam que participam de uma impostura dotada de claro sentido político.
O Lula dos "300 picaretas" sem nome é o mesmo que, no poder, abriu
caminho para a fabricação pecuniária
de uma base parlamentar de picaretas
nominalmente identificados pelo procurador-geral. Não há contradição,
mas coerência e continuidade, na estratégia de desmoralização das instituições políticas. A acusação genérica,
a calúnia, armas do líder oposicionista, transfiguraram-se na corrupção
ativa sustentada pela caneta que assina nomeações e edita medidas provisórias.
A doença da corrupção existe no
mundo inteiro, em todos os governos.
Mas as suas modalidades agudas, sistêmicas, desenvolvem-se no ambiente
degenerativo formado pelo confronto
de líderes carismáticos e salvacionistas com as instituições da democracia.
Os primeiros, cuja força deriva do
contato direto com o povo, precisam
desvencilhar-se da teia de mediações
institucionais que circunscrevem a
sua influência. O instrumento para isso, na falta de uma polícia política, é o
dinheiro clandestino.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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