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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

E se os juros caíssem?

Dois temas dominam a discussão nacional: se os juros devem cair e se os radicais do PT devem ser expurgados. Sem ligação aparente, convergem, porém, num atributo perturbador: passam longe do que o Brasil precisa fazer para levantar-se do fatalismo e da perplexidade em que afundou. Um simboliza falta de proposta; o outro, falta de agente.
Há grita geral para baixar os juros. O que aconteceria amanhã se os juros baixassem, como acabarão baixando? Num primeiro momento, nada. Num segundo momento, se continuassem a baixar, começaria a confusão, na forma de desconfiança e desinvestimento. Só num terceiro momento, se o governo não só persistisse na queda dos juros mas também reorientasse toda a política econômica e social, é que os efeitos benéficos começariam a sobrepujar os prejudiciais. Não é razão para deixar de baixar os juros. É motivo para abandonar a ilusão agradável, perigosa e absurda que exemplifica nossa atração pelos atalhos e pelas contradições não resolvidas: a de que dinheiro pouco mais barato salvaria o Brasil.
O juro real está a 19%. A 12% continuaria a significar a eutanásia dos produtores e o sepulcro do emprego. As "reformas" previdenciária e tributária propostas pelo governo são tão modestas em suas dimensões e tão demoradas em seus efeitos (a não ser nos efeitos sobre suas vítimas) que não atenuarão a dependência do governo da confiança financeira. Ao apressar a queda dos juros, o governo perderia a confiança antes de viabilizar o investimento e a produção.
A única maneira de assegurar que o juro real seja inferior à taxa de média de retorno dos negócios é fazer revolução de políticas e de idéias: adotar estratégia nacional de reconstrução econômica e social que substitua o projeto que o governo central abraçou no período de Collor a Lula. Quem exige juro baixo sem admitir a necessidade dessa revolução está mentindo ao país e a si mesmo.
Essa mentira encontra reforço na obsessão com os dissidentes do PT. A obsessão serve de álibi para divertir-se com uma oposição de fantasia em vez de construir uma oposição de verdade. Tudo se arma para organizar a alternância do poder entre o PT e o PSDB como duas vertentes do mesmo projeto. E a eleição presidencial de 2006 como concorrência entre Lula e Fernando Henrique -dois homens mundanos, jeitosos e céticos, que vêem a humanização do inevitável como limite da política transformadora.
Alternativa séria a isso não se confunde com sectarismo de esquerda. É luta para mais uma vez organizar a convergência de centro-esquerda, voltada para os interesses do trabalho, da produção e da independência nacional, que possa abrir outro rumo para o Brasil. Será fácil identificá-la porque sua preocupação central não será a urgência de baixar os juros.
Com que forças podemos construir essa convergência depois de tantas tentativas frustradas? E sob governo que, desmoralizando os partidos e aliciando a mídia, radicaliza nas práticas anti-republicanas para poder radicalizar no projeto econômico e social que foi eleito para substituir? Começamos do quase nada, desfalcados de partidos e de líderes e postos diante de um país atordoado pela repetição das mentiras açucaradas. Sejamos, por isso mesmo, diretos nas palavras, audaciosos nos métodos e pacientes nos esforços. Atuemos primeiro na opinião nacional para só depois enfrentar a política partidária. Confiemos no discernimento da nação. Demora, mas chega.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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