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CARLOS HEITOR CONY
Tarde de maio
RIO DE JANEIRO - Apesar da ventania da última sexta-feira, o mês de
maio foi uma sucessão de dias bonitos aqui no Rio -e acredito que em
outras cidades e campos também.
Gosto da luz que maio nos traz, com
um sol fatigado do verão que acabou
e formidável na luz, uma luz que
inunda todas as coisas, a grama dos
parques, a pedra negra que marca
nossa paisagem, as águas todas e até
mesmo pessoas, cachorros e, de repente, aquilo que nós chamamos de
mundo.
Contudo, nos últimos anos, é com
estranha tristeza que vejo esta luz
derramada sobre a lagoa, sobre a
mataria das Paineiras e do Sumaré,
sobre o parque onde há pedalinhos e
a grama é mais verde.
Num maio que já é antigo, quando
o sol começa a cair sobre a pedra da
Gávea e tudo fica mais dourado e brilhante, levei Mila em meus braços e
ela me levou também, e nunca me
devolveu inteiro, minha metade mais
importante foi com ela, o que sobrou
nem valeria a pena ter sobrado.
Dediquei a ela um romance, após
23 anos de uma diáspora literária em
que nada escrevi para mim, fazendo
apenas o dever de casa de um profissional que trabalha na imprensa e escreve para os outros. Sem Mila, primeiramente tentei escrever para ela
-que me sabia ler sem necessidade
de palavras e gestos, bastava que ficássemos juntos e ela me compreendia, me perdoava e, acima de tudo,
me aceitava.
Depois passei a escrever novamente
para mim. A prova disso é esta crônica dedicada a maio e a Mila. Deveria
estar comentando a taxa de juros, o
terremoto na Argélia, a violência
nossa de cada dia.
"Mas para que tanto sofrimento se
lá fora há o lento deslizar da noite?"
O pequeno grande poema de Manuel
Bandeira pode até ser um consolo.
Gosto de lembrá-lo quando me sinto
mais triste e mais só. Basta substituir
a "noite" do poeta pela tarde, pela
minha tarde de maio. E o "sofrimento" que não sinto pela saudade.
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