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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Tarde de maio

RIO DE JANEIRO - Apesar da ventania da última sexta-feira, o mês de maio foi uma sucessão de dias bonitos aqui no Rio -e acredito que em outras cidades e campos também. Gosto da luz que maio nos traz, com um sol fatigado do verão que acabou e formidável na luz, uma luz que inunda todas as coisas, a grama dos parques, a pedra negra que marca nossa paisagem, as águas todas e até mesmo pessoas, cachorros e, de repente, aquilo que nós chamamos de mundo.
Contudo, nos últimos anos, é com estranha tristeza que vejo esta luz derramada sobre a lagoa, sobre a mataria das Paineiras e do Sumaré, sobre o parque onde há pedalinhos e a grama é mais verde.
Num maio que já é antigo, quando o sol começa a cair sobre a pedra da Gávea e tudo fica mais dourado e brilhante, levei Mila em meus braços e ela me levou também, e nunca me devolveu inteiro, minha metade mais importante foi com ela, o que sobrou nem valeria a pena ter sobrado.
Dediquei a ela um romance, após 23 anos de uma diáspora literária em que nada escrevi para mim, fazendo apenas o dever de casa de um profissional que trabalha na imprensa e escreve para os outros. Sem Mila, primeiramente tentei escrever para ela -que me sabia ler sem necessidade de palavras e gestos, bastava que ficássemos juntos e ela me compreendia, me perdoava e, acima de tudo, me aceitava.
Depois passei a escrever novamente para mim. A prova disso é esta crônica dedicada a maio e a Mila. Deveria estar comentando a taxa de juros, o terremoto na Argélia, a violência nossa de cada dia.
"Mas para que tanto sofrimento se lá fora há o lento deslizar da noite?" O pequeno grande poema de Manuel Bandeira pode até ser um consolo. Gosto de lembrá-lo quando me sinto mais triste e mais só. Basta substituir a "noite" do poeta pela tarde, pela minha tarde de maio. E o "sofrimento" que não sinto pela saudade.


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