São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 2000


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MARCO HISTÓRICO

Não resta dúvida de que o sequenciamento do genoma humano, anunciado ontem, é um marco na história da ciência e das realizações humanas. Nas versões mais exaltadas, foi comparado à conquista da Lua (imprensa), ao aprendizado da linguagem com a qual Deus criou a vida (Bill Clinton) e à descoberta dos antibióticos (Tony Blair).
Uma interpretação mais discreta, de quem não precisa justificar investimentos da ordem de centenas de milhões de dólares, é a do pesquisador Isaias Raw, presidente da Fundação Butantan: "É uma etapa meio burra, rotineira, mas que precisava ser feita. É como se tivéssemos um dicionário. Agora temos que saber como usá-lo. Vamos passar os próximos anos aprendendo isso".
Como todas as metáforas, as frases registradas acima descrevem -e de modo inexato- apenas parte do todo. A da imprensa e a de Clinton enfatizam o caráter histórico do anúncio. A de Blair ressalta o impacto que o empreendimento deverá ter sobre a saúde e a de Raw, talvez a mais precisa, acaba sacrificando a dimensão do esforço empreendido.
Em dez anos, um consórcio público de centros de pesquisa espalhados pelo mundo produziu o rascunho quase completo das bases nitrogenadas que compõem o DNA humano. São 3,12 bilhões de unidades químicas designadas pelas letras C, T, G e A. Se toda a sequência fosse impressa, ocuparia 10 mil exemplares da edição dominical de um grande jornal. Calcula-se que apenas 2% dessas letras tenham relevância em termos de características genéticas.
Parte bastante significativa desse esforço foi realizada nos últimos meses, como o atesta o ministro da Pesquisa da França, Roger-Gérard Schwartzenberg: "Mais de 60% dos dados disponíveis hoje foram obtidos ao longo dos últimos seis meses. Durante esse período, o consórcio produziu um fluxo contínuo de sequências brutas de mil bases por segundo, trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana".
O Projeto Genoma do consórcio público foi acelerado pela concorrência da empresa norte-americana Celera, que desenvolvia o seu próprio sequenciamento e que pretende patentear alguns genes. Pelo cronograma inicial, o sequenciamento não terminaria antes de 2003 ou 2005. Depois de muita disputa e de um acordo cujo teor ainda não é bem conhecido, os dois grupos acabaram fazendo um anúncio conjunto.
Essa batalha entre o projeto público e a Celera expõe os desafios que se colocam a partir de agora. Aos cientistas caberá a gigantesca tarefa de aprender a ler esse estranho alfabeto e dele tirar aplicações práticas, que devem incluir avanços muito significativos no diagnóstico e tratamento das mais diversas doenças. Como disse o presidente Bill Clinton: "É agora concebível que os filhos de nossos filhos só conheçam o termo "câncer" como uma constelação".
À sociedade como um todo fica a incumbência, não menos importante, de definir os limites éticos para as possibilidades que os novos conhecimentos vão colocar. A questão mais imediata é a do patenteamento dos genes. O consórcio público vai tornar as informações do genoma patrimônio da humanidade. A Celera pretende patentear genes úteis. É lícito fazê-lo? Mesmo que ainda não se saiba direito para que serve uma determinada sequência?
Pode-se ir ainda mais longe. Talvez se torne possível que uma companhia de seguro saiba de antemão as doenças de que seu segurado provavelmente vai padecer. Poderá utilizar essas informações? Pais talvez possam escolher características que queiram em seus filhos. É razoável?
E essa é apenas a ponta do iceberg. Alguém já escreveu que a legislação é incapaz de acompanhar o ritmo em que se dão hoje os avanços científicos. É provável que seja assim. É fato, entretanto, que, quanto maior for a distância entre as possibilidades técnicas e a ética, menos o homem será senhor de seu destino, o que não deixa de ser paradoxal.



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