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MARCO HISTÓRICO
Não resta dúvida de que o sequenciamento do genoma humano, anunciado ontem, é um marco na história da ciência e das realizações humanas. Nas versões mais
exaltadas, foi comparado à conquista da Lua (imprensa), ao aprendizado da linguagem com a qual Deus
criou a vida (Bill Clinton) e à descoberta dos antibióticos (Tony Blair).
Uma interpretação mais discreta,
de quem não precisa justificar investimentos da ordem de centenas de
milhões de dólares, é a do pesquisador Isaias Raw, presidente da Fundação Butantan: "É uma etapa meio
burra, rotineira, mas que precisava
ser feita. É como se tivéssemos um
dicionário. Agora temos que saber
como usá-lo. Vamos passar os próximos anos aprendendo isso".
Como todas as metáforas, as frases
registradas acima descrevem -e de
modo inexato- apenas parte do todo. A da imprensa e a de Clinton enfatizam o caráter histórico do anúncio. A de Blair ressalta o impacto que
o empreendimento deverá ter sobre a
saúde e a de Raw, talvez a mais precisa, acaba sacrificando a dimensão do
esforço empreendido.
Em dez anos, um consórcio público de centros de pesquisa espalhados pelo mundo produziu o rascunho quase completo das bases nitrogenadas que compõem o DNA humano. São 3,12 bilhões de unidades
químicas designadas pelas letras C,
T, G e A. Se toda a sequência fosse
impressa, ocuparia 10 mil exemplares da edição dominical de um grande jornal. Calcula-se que apenas 2%
dessas letras tenham relevância em
termos de características genéticas.
Parte bastante significativa desse
esforço foi realizada nos últimos meses, como o atesta o ministro da Pesquisa da França, Roger-Gérard
Schwartzenberg: "Mais de 60% dos
dados disponíveis hoje foram obtidos ao longo dos últimos seis meses.
Durante esse período, o consórcio
produziu um fluxo contínuo de sequências brutas de mil bases por segundo, trabalhando 24 horas por
dia, sete dias por semana".
O Projeto Genoma do consórcio
público foi acelerado pela concorrência da empresa norte-americana
Celera, que desenvolvia o seu próprio
sequenciamento e que pretende patentear alguns genes. Pelo cronograma inicial, o sequenciamento não
terminaria antes de 2003 ou 2005.
Depois de muita disputa e de um
acordo cujo teor ainda não é bem conhecido, os dois grupos acabaram
fazendo um anúncio conjunto.
Essa batalha entre o projeto público e a Celera expõe os desafios que se
colocam a partir de agora. Aos cientistas caberá a gigantesca tarefa de
aprender a ler esse estranho alfabeto
e dele tirar aplicações práticas, que
devem incluir avanços muito significativos no diagnóstico e tratamento
das mais diversas doenças. Como
disse o presidente Bill Clinton: "É
agora concebível que os filhos de
nossos filhos só conheçam o termo
"câncer" como uma constelação".
À sociedade como um todo fica a
incumbência, não menos importante, de definir os limites éticos para as
possibilidades que os novos conhecimentos vão colocar. A questão
mais imediata é a do patenteamento
dos genes. O consórcio público vai
tornar as informações do genoma
patrimônio da humanidade. A Celera pretende patentear genes úteis. É
lícito fazê-lo? Mesmo que ainda não
se saiba direito para que serve uma
determinada sequência?
Pode-se ir ainda mais longe. Talvez
se torne possível que uma companhia de seguro saiba de antemão as
doenças de que seu segurado provavelmente vai padecer. Poderá utilizar
essas informações? Pais talvez possam escolher características que
queiram em seus filhos. É razoável?
E essa é apenas a ponta do iceberg.
Alguém já escreveu que a legislação é
incapaz de acompanhar o ritmo em
que se dão hoje os avanços científicos. É provável que seja assim. É fato,
entretanto, que, quanto maior for a
distância entre as possibilidades técnicas e a ética, menos o homem será
senhor de seu destino, o que não deixa de ser paradoxal.
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