São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 2000


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Sistemas elitistas


Nosso sistema penal não se aplica "àqueles que almoçam nos mesmos restaurantes" dos operadores do Direito


JOSÉ RICARDO MEIRELLES

Muito tem sido falado e escrito na mídia acerca da postura do Ministério Público Federal quanto aos pedidos de prisão preventiva que têm surgido em decorrência dos fatos que estão sendo por ele apurados, fatos esses de grande repercussão.
Excluindo-se de imediato algumas considerações maliciosas, tivemos a grata oportunidade de ler interessante artigo publicado recentemente na Folha, de autoria de brilhante criminalista que faz parte, se nos permite assim considerá-lo, tão-somente em razão do critério etário, também, da "nova geração" (expressão em nosso entender não muito feliz por motivos óbvios). Naquele artigo, o eminente jurista Alberto Zacharias Toron aduz, pelo que depreendemos, com muita felicidade e propriedade, que não se podem "justificar injustiças futuras com base em injustiças presentes ou passadas".
Ou seja, para que o leitor bem entenda, não se devem fundamentar pedidos de prisão preventiva de pessoas envolvidas em grandes delitos argumentando que apenas os pobres e as pessoas menos favorecidas se encontram nos presídios, pois a Justiça se aplica a todos indistintamente e, se injustiça há contra os pobres, essa injustiça, sim, é que deve ser corrigida, não simplesmente repassar injustiças aos mais favorecidos.
Nesse ponto, como já aduzimos, concordamos plenamente. Mas entendo que o problema vai um pouco mais além. É fato incontroverso que nossas prisões estão abarrotadas de pessoas menos favorecidas economicamente. E qual a razão jurídica desse fato incontestável?
Não buscamos aqui análises sociológicas mais profundas, eis que, como bem ressalta um dos maiores juristas portugueses, José de Oliveira Ascensão, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, criticando, de certa forma, Eugen Ehrlich, que considerava amplamente a incidência do momento fático no próprio conceito do Direito ("Grundlengung der Soziologie des Rechts", Munique e Berlim, 1929), opondo-se, assim, à visão normativista de Max Weber: "A observação social diz-nos como uma lei é entendida, mas não qual o entendimento válido (...). A crítica ao mau entendimento da regra só se pode fazer baseada em considerações normativas, e não em considerações de mero facto" ("O Direito: Introdução e Teoria Geral", Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., Lisboa, 1981, pág. 85).
Assim, o que há de concreto é que nossos sistemas penal e processual penal historicamente não vêm se aplicando aos mais favorecidos, ou seja, "àqueles que almoçam nos mesmos restaurantes" dos operadores do Direito. Daí o convite à reflexão sobre nossos sistemas (se assim ainda podemos chamá-los) penal e processual penal. Nossos códigos penal e de processo penal, não obstante as reformas neles inseridas, ainda são, em nosso entender, códigos elitistas. Cesare Beccaria, em seu clássico "Dei Delitti e Delle Pene", escreve, com autoridade, que a medida da pena deve ser proporcional ao seu dano social.
E é exatamente isso que não vemos em nosso sistema penal e processual penal. Basta uma "olhada" nas penas dos crimes contra o sistema financeiro, chamados "do colarinho branco", contra a ordem tributária e econômica, contra a economia popular etc., em geral praticados por pessoas instruídas e favorecidas economicamente e que lesam centenas de pessoas, que veremos a desproporção (para menor) entre estas e aquelas penas previstas para os chamados "crimes comuns", em regra praticados pelos menos favorecidos, como roubo, furto, estelionato e outras fraudes.
Basta averiguar os requisitos para a decretação da prisão preventiva e verificamos que essa fora direcionada exatamente para coibir aqueles "crimes comuns", ou seja, direcionada para os menos favorecidos. Não se trata de defender a majoração das penas, experiência que já demonstrou ser ineficaz, mas sim de trazer à reflexão esse tratamento desigual, fruto de normas mal-elaboradas e que acabam por se aplicar, como é fato, somente aos menos favorecidos.
Daí, por vezes, a indignação que podem causar os pedidos de prisão de pessoas envolvidas, por exemplo, em crimes do colarinho branco. Não existe, em nosso entender, uma reflexão mais intensa nesse sentido, eis que, muitas vezes, atrelados que estamos à letra da lei, nos esquecemos a quem ela se dirige, ou seja, à sociedade como um todo, e que deveria se dirigir a todos indistintamente, e não apenas a alguns menos favorecidos. Talvez essa seja uma das causas que levem à indignação e que escondam o mal maior, qual seja, a urgente reforma de nossos sistemas de modo a dar tratamento igualitário a todos os indivíduos, de acordo com o dano social causado.
Quem sabe não consigamos mudar o velho ditado lembrado por um amigo, "se você mata uma pessoa é um assassino, se mata centenas é um herói".


José Ricardo Meirelles, 33, é procurador da República em São Paulo e membro dos conselhos estaduais Penitenciário e de Política Criminal e Penitenciária.



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