São Paulo, sábado, 27 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deveria adotar uma nova política econômica?

SIM

A remoção do entulho neoliberal

CARLOS LESSA

Sim. A nova política teria como diretiva principal reduzir a menos da metade a taxa de juros real. Ao fazê-lo, surgiria oxigênio para as políticas sociais e para a infra-estrutura econômica e social. A queda da taxa de juros, combinada com o investimento público, estimularia o investimento privado. O país superaria a medíocre taxa de investimento, que anda abaixo de 20% do PIB. Retomaria uma trajetória de crescimento em um círculo virtuoso de geração de emprego e renda. Mas a redução da taxa de juros poderia espantar o capital cigano estrangeiro que parasita os juros elevados que nos sangram. O Banco Central precisaria adotar restrições à atuação desse capital especulativo.
É um pesadelo saber que o Brasil gastará, neste ano, R$ 7 bilhões com o Bolsa Família, enquanto pagará mais de R$ 140 bilhões de juros de dívida pública. Pochmann estima que 80% desses bilhões se destinem a pouco mais de 20 mil famílias. Temos o primeiro lugar mundial em taxa de juros real, com o dobro do segundo colocado. Tanto o superávit espetacular (5% do PIB) como o déficit nominal ainda assustador, apenas para os rentistas.
Outras decisões teriam que ser tomadas para uma nova política econômica. Nosso BC, a exemplo do FED americano, preocupar-se-ia com o nível geral de preços e com a atividade econômica. Utiliza o modelo de metas de inflação da forma mais beata. Fixa uma meta de redução na taxa, medida pelo IPCA. Não expurga preços indexados por contratos com prestadores de serviços públicos. Nosso BC combina fidelidade obsessiva a esse modelo com a crença no produto potencial. Construiu, como limite superior de crescimento do PIB, 3,5% ao ano -acima disso, o país estaria sob ameaça do monstro inflacionário. É necessário ter presente que o Brasil, crescendo menos que 5% ao ano, não absorve sequer o crescimento vegetativo da força de trabalho. O país, com uma população economicamente ativa de 80 milhões, em que 23 milhões estão desempregados ou subempregados, verá crescer a massa de excluídos. Pouco dinamismo servirá para manter os salários deprimidos.
O "remédio" da elevação da taxa de juros teria outro mérito, para o BC: atrair o capital cigano que vem do exterior gozar as delícias financeiras que o país propicia -um banquete tão atraente que o afluxo de dólares valoriza o real. Esse é um vetor espúrio de controle de preços. O câmbio flutuante permite a âncora cambial sujeita a ventos e tempestades da conjuntura internacional. Façamos votos de que o barril de petróleo não passe de US$ 80.
Outro conceito que aprisiona o país é o NFSP (Necessidades de Financiamento do Setor Público), que compreende as estatais como unidades de gasto, não de produção. Impede que contraiam empréstimos para novos investimentos produtivos. Trata o investimento como gasto dispensável. A adesão, nos anos 80, a esse conceito foi a preliminar para a privatização, mesmo quando, ao fazê-la, o Tesouro tivesse que assumir passivos perigosos.
Outro conceito completa o quadro sinistro: o superávit primário é resultado líquido de receitas menos gastos não-financeiros. Dado um montante de dívida acumulada, no principal indexada à taxa de juros real mais elevada do planeta, deriva-se um montante de juros a ser pago como prioridade absoluta. O superávit tem que ser feito cortando gastos sociais e investimentos públicos. O Banco Central eleva a taxa de juros real e vê a inflação como fenômeno controlável por corte de demanda global. Doa a quem doer. A Secretaria do Tesouro comprime e procrastina os gastos, convertendo numa peça de ficção o orçamento aprovado pelo legislativo.
É necessária uma cirurgia institucional para separar mercado de dinheiro, que remunera no over os saldos de bancos, do mercado de dívida pública. O Brasil, com a herança da hiperinflação, preservou um sistema que remunera o curto prazo à mesma taxa de juros do longo prazo. Como mais de 60% da dívida pública é corrigida diariamente pela Selic, a bola de neve infernal da dívida pública rola, esmagando a potencialidade de crescimento do país.
O modelo de metas de inflação, a perfeita liberdade para o capital estrangeiro vir e ir por 24 horas, a peculiar redução do longo ao curto prazo, a estrita observância do NFSP e a santificação do superávit primário compõem o entulho neoliberal que precisa ser removido para uma nova política econômica.
Em tese, o presidente Lula pode removê-lo. Creio que não o fará, porque seu capital político hoje está dependente do aplauso dos rentistas. Afinal, Marcio Cipriano, presidente da Febraban, disse, em 3 de maio deste ano: "Lula está fazendo tudo que a gente quer (...). Se a eleição fosse hoje, estaria reeleito". A novidade, que não inova a política econômica, é o déficit nominal "zero". O professor Delfim Netto dará sobrevida à confortável taxa de juros real que aquece os corações rentistas.


Carlos Lessa, 69, economista, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, foi reitor da UFRJ (2002) e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).


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