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São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma questão de Estado

LUIZ BEVILACQUA


A tecnologia espacial tem um papel fundamental na produção de bens e serviços essenciais para o Brasil

A busca de autonomia em áreas estratégicas requer tratamento de "programa de Estado", que se traduz em investimentos vultosos e de longo prazo de maturação, mas que, se levados a efeito com determinação e continuidade, resultam invariavelmente em enormes benefícios para o país.
Nenhuma nação soberana abrirá mão de alternativas próprias de geração e controle da distribuição de bens e serviços essenciais para seu povo. Isso significa independência. Isso significa presença ativa, com voz e vez, nos fóruns internacionais de negociação. Isso significa peso nas discussões e decisões que afetam a ordem mundial. Vejo na decisão do presidente Lula de destacar o Programa Fome Zero como prioridade nacional uma clara compreensão dessa necessidade.
Há casos notáveis, em que colhemos hoje os frutos de investimentos estratégicos do Estado que resultaram em importantes ganhos tecnológicos, econômicos e sociais. Há clara correlação, por exemplo, entre: os avanços de nosso setor agropecuário e as ações da Embrapa; a supremacia tecnológica na exploração de petróleo em águas profundas e os investimentos em P&D da Petrobras; o sucesso da Embraer e os investimentos da Aeronáutica no desenvolvimento dos primeiros aviões Bandeirante.
É necessário que busquemos nesses exemplos a coragem e a vontade política para proceder de forma análoga em outros setores também estratégicos para o país, como o Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE). É chegada a hora de lhe conferir o tratamento devido a um programa de Estado.
A tecnologia espacial tem um papel fundamental na produção de bens e serviços essenciais para o Brasil.
Além do caso mais notório das comunicações por satélites, abrangendo a telefonia celular e os modernos sistemas de controle e segurança de vôo, é essencial também para uma série sempre crescente de aplicações hoje indispensáveis às ações do Estado, como o monitoramento do desmatamento da Amazônia e de focos de incêndio em várias regiões do país, o acompanhamento da utilização e da cobertura da terra, a predição de safras agrícolas, o controle de poluição no oceano e em rios, o monitoramento e dimensionamento das bacias hidrográficas, a previsão do tempo e o estudo do clima, a avaliação da evolução de epidemias, o monitoramento e planejamento da expansão urbana etc.
Embora as atividades espaciais brasileiras tenham se iniciado na década de 60, pode-se dizer que o programa espacial brasileiro, entendido como a determinação de levar o Brasil ao espaço de forma autônoma -o que requer satélites, lançadores e base de lançamentos próprios-, iniciou-se em 1980, com a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB).
Como um dos frutos da MECB, o Brasil possui hoje o Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, privilegiado no cenário mundial por sua localização e condições geográficas.
No tocante, respectivamente, à tecnologia de satélites e de veículos lançadores, o Inpe, do Ministério da Ciência e Tecnologia, e o IAE-CTA, do Ministério da Defesa, lograram importantes avanços. Há que ressaltar nossos dois satélites de coleta de dados, em órbita muito além de suas vidas nominais, nossos satélites de observação de recursos terrestres, desenvolvidos em parceria com a China, nossa família de foguetes suborbitais, com mais de 300 lançamentos bem-sucedidos. E devemos nos orgulhar, apesar da trágica adversidade recente, do progresso alcançado no desenvolvimento de um veículo lançador de satélites próprio.
Esses projetos, além dos resultados tecnológicos almejados, promoveram a formação de grande número de especialistas que atuam nas instituições governamentais e na indústria aeroespacial brasileira, possibilitaram a implantação de importante infra-estrutura laboratorial, qualificaram empresas e propiciaram desdobramentos em uma série de produtos de alta tecnologia destinados a outros setores.
Apesar disso, quando comparamos nosso desenvolvimento com o de países que na década de 80 tinham dificuldades semelhantes às nossas, como Índia e China, potências emergentes na área espacial, é forçoso reconhecer que nossa evolução é modesta.
É importante perguntar o que tem faltado ao nosso programa. A resposta não é simples, mas um componente vital é óbvio: faltaram investimentos expressivos e continuados. Após um período auspicioso na década de 80, quando a MECB executou orçamentos anuais de U$ 100 milhões, responsáveis por muitos dos resultados colhidos nos anos 90, os recursos definharam. Em contrapartida, a verba destinada aos programas indiano e chinês cresceu consistentemente, saindo de patamares semelhantes ao nosso, nos anos 80, para valores que hoje se situam na casa de US$ 500 milhões por ano.
Para alcançar o domínio da tecnologia de projeto, construção e operação de satélites e veículos, é necessário um considerável e continuado investimento do Estado. Pretendendo-se, de fato, perseguir a autonomia nesse setor, há que reverter drasticamente a tendência da alocação de recursos praticada.
Essa é a decisão que se impõe em curtíssimo prazo, pois estamos às vésperas de definir o Plano Plurianual, que consolidará o orçamento pelos próximos quatro anos. É preciso ter a coragem de ousar. A exemplo de Petrobras, Embrapa e Embraer, a exemplo de Índia e China, os resultados virão, propiciando retorno muito significativo em termos de progresso e autonomia do país, deixando-o menos vulnerável a interesses externos que nos são contrários.


Luiz Bevilacqua, 66, engenheiro, é o presidente da AEB (Agência Espacial Brasileira).


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