São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

Lula lembra Deng

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na posse da diretoria da Firjan foi altamente revelador do pragmatismo que o acompanha desde quando era negociador sindical e que tem sido responsável pelo sucesso que até aqui o seu governo tem conseguido no nível macroeconômico.
A mensagem central e confortadora para os que ainda têm dúvidas sobre a orientação do governo foi envolvida num exagero ("a ideologia morreu..."), mas isso não lhe tirou a objetividade essencial: "Quem está com os pés no barro não quer saber se o asfalto será feito pelo setor privado ou pelo governo". Foi mais uma explicitação da mudança ideológica do Partido dos Trabalhadores feita num dos templos do capitalismo.
Não é possível deixar de identificar nessa posição o mesmo pragmatismo que levou Deng Xiaoping, depois de reabilitado, a transformar em 25 anos a velha e atrasada China numa das potências mais admiradas do mundo. A mensagem de Deng tinha duas partes:
1) em lugar do famoso final do "Manifesto Comunista", de 1848 -"proletariado de todo o mundo, uni-vos"-, ele proclamou: "chineses de todo o mundo, enriquecei-vos" e 2) "não interessa a cor do gato, desde que ele apanhe os ratos".
Foi a lenta redução dos preconceitos dos empresários contra o velho sindicalista, transformado em presidente de todos os brasileiros, que criou as "condições para a volta ao desenvolvimento". A dissipação das resistências demorou porque muito pouca gente acreditou na "Carta aos Brasileiros", na qual o candidato Lula apresentou o "novo programa do PT", plenamente integrado aos princípios da Constituição de 1988.
O ano de 2003 foi complicado. Uma recessão combinada com uma política cambial que estimulou as exportações acelerou a geração do primeiro superávit em conta corrente desde 1992, indicando uma correção importante na nossa vulnerabilidade externa. Puxado pelo setor externo, o agrobusiness mostrou sua competência. Lentamente, o estímulo exportador foi se transmitindo aos demais setores da economia.
Confirmou-se assim, mais uma vez (há dezenas de experiências semelhantes), que, cada vez que um governo é razoavelmente amigável ao setor privado e não impede que os agentes econômicos se apropriem legalmente dos benefícios de suas iniciativas, o "espírito animal" dos empresários se encarrega de produzir o crescimento. A despeito de toda a sofisticação das teorias para explicar o desenvolvimento, ele no fim se resume a um "estado de espírito".
Os economistas podem construir "funções de produção" que incorporem ao mesmo tempo a Sorveteria Aurora de Guaxupé e a Companhia Siderúrgica Nacional. Podem divertir-se separando o que supõem ser a contribuição de cada fator (trabalho, capital e tecnologia). Mas, se lhes faltar a imaginação, a capacidade de adaptação e o vigor do "espírito animal" do empresário, as "funções" serão apenas peças mecânicas. E, se faltar ao "espírito animal" do empresário um ambiente ecológico favorável (o "espírito de desenvolvimento" criado pela liderança política), ele abortará.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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